Trump x Brasil: como ação dos EUA ameaça a soberania brasileira e afeta a política nacional – PontoPoder

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A possibilidade do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), ser sancionado pelo governo dos Estados Unidos, sob comando de Donald Trump, pode abrir uma página inédita na relação entre o país e o Brasil. A ameaça, feita pelo secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, foi classificada como “sem precedentes” e como um episódio “inusitado” na história diplomática entre os dois países, que remonta ao século XIX, por especialistas em Direito Internacional ouvidos pelo Diário do Nordeste

“Seria uma afronta à soberania brasileira, porque estaria contra uma instituição constitucional, um dos três Poderes (do Brasil)”, explica a professora de relações internacionais da ESPM, Denilde Holzhacker. “É uma afronta à soberania nacional. (…) Além de uma sanção ao integrante do Supremo, é uma sanção ao Estado brasileiro”, concorda o professor titular da Universidade de Fortaleza, Martonio Mont’alverne.

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No entanto, a ponderação feita é de que a fala de Rubio na Câmara de Representantes dos EUA, no final de maio, instado por um deputado republicano, também possui caráter ainda ‘informal’, sem ter sido formalizada pelo Governo Trump —  inclusive, sem os pormenores dos argumentos a serem utilizados para justificar as sanções ao ministro brasileiro. 

A questão vem sendo tratada pelo Itamaraty, nos bastidores, em conversas com representantes do governo estadunidense, em uma tentativa de minimizar ou mesmo impedir as sanções, mas evitando qualquer confronto. O presidente Lula, no entanto, condenou publicamente a situação no domingo (1º). 

“Que história é essa de os Estados Unidos querer negar alguma coisa, e criticar a Justiça brasileira. Eu nunca critiquei a Justiça deles. Ele faz tanta barbaridade, eu nunca critiquei. Faz tanta guerra, mata tanta gente. Por que eles vão querer criticar o Brasil?”, indagou. 

Considerada mais grave, a possível sanção ao ministro Alexandre de Moraes não é um fato isolado. Na última quarta-feira (28), uma semana depois de falar sobre Moraes, Rubio anunciou restrições de visto contra autoridades estrangeiras que são “cúmplices de censura a americanos”. 

Jason Miller, consultor de Trump, compartilhou a publicação de Rubio marcando o perfil de Alexandre de Moraes no X (antigo Twitter). Cientista político e professor da FGV EAESP, Guilherme Casarões pontua que os episódios mudam o cenário anterior, onde não havia indícios de que o Brasil “estava no rol de prioridades absolutas” do Governo Trump. 

“A gente já está em uma situação diferente. Uma situação em que, aparentemente, existe, pelo menos entre alguns membros do Governo Trump, uma preocupação com a situação específica do Brasil”, pontua. 

Os dois momentos citados passam, então, a ser lidos dentro de um cenário mais amplo, onde é possível relembrar, por exemplo, a pressão dos EUA para que o Brasil classificasse o PCC e o Comando Vermelho como organizações terroristas. Ou outros episódios ainda mais ligados às relações políticas, como críticas diretas de Donald Trump a Lula, principalmente antes da posse do estadunidense, uma aproximação de Eduardo Bolsonaro, filho do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), dos círculos trumpistas e a queda de braço entre Alexandre de Moraes e Elon Musk — recém-saído do Governo Trump, mas ainda com forte influência na Casa Branca. 

Por que é uma afronta à soberania nacional?

“Primeiro, a gente está falando de um conceito em que, na lógica das relações entre os países, no sistema internacional, que cada país tem as suas leis, as suas formas de agir internamente e não deve sofrer interferência de um país externo”, explica Denilde Holzhacker. 

Uma eventual sanção a Alexandre de Moraes é vista, portanto, não como uma penalidade individual, mas sim a atuação dele como ministro da Suprema Corte — “que está exercendo a função dentro do marco legal e dos preceitos da legislação brasileira”, completa Holzhacker. 

“Ou seja, o ministro Alexandre de Moraes tem as ações convalidadas pelo Supremo Tribunal Federal, ele é uma autoridade regularmente e institucionalmente investida no cargo que está. (…) Então, não há a menor razão para esta eventual aplicação de sanções pessoais contra o integrante do Supremo Tribunal Federal”, argumenta Martonio Mont’alverne.

A perspectiva apontada por Marco Rubio é de uso da Lei Global Magnitsky para a aplicação de sanções a Alexandre de Moraes. A legislação estadunidense pode, desde 2016, aplicar punições contra pessoas que cometeram violações a direitos humanos ou atos graves de corrupção.

“Punir o ministro do Supremo por uma decisão tomada no âmbito do Judiciário seria uma afronta à própria legislação brasileira e a instituição do Judiciário brasileiro”, pontua Guilherme Casarões. Ele cita, por exemplo, que existem discussões sobre as decisões monocráticas de ministros do STF — “se são legais ou legítimas” —, “mas essa é uma discussão feita no âmbito da política nacional”.

“A gente não pode deixar uma autoridade estrangeira dizer sobre uma suposta ilegalidade de uma decisão de um ministro da Suprema Corte do Brasil. (…) Isso abriria caminho para um questionamento do próprio arcabouço legal do Brasil pelos Estados Unidos, abrindo um precedente para que os americanos pudessem sancionar toda e qualquer pessoa que porventura defenda uma legislação que é brasileira e que vai de encontro a algum interesse americano ou alguma concepção de liberdade por parte dos Estados Unidos”, acrescenta Guilherme Casarões. 

Algo similar é apontado sobre a restrição de visto a autoridades estrangeiras que, de alguma forma, atuem contra a liberdade de expressão. “A pergunta que tem que ser feita é: liberdade de expressão segundo os critérios de quem? Segundo os critérios americanos de liberdade incondicional? Então tem vários governos que, em várias circunstâncias, vão ferir a liberdade de expressão sob o padrão americano”, diz Casarões.

Contudo, há o entendimento de que a política de vistos é algo inerente de cada país, como dito pelo ministro de Relações Exteriores brasileiro, Mauro Vieira. “A política de visto é de cada Estado, cada um toma as decisões de conceder ou não conceder”, disse o chanceler na última sexta-feira (30) em audiência na Câmara dos Deputados. 

O tom de cautela também tem sido utilizado ao falar sobre a possibilidade de aplicação da Lei Magnitsky contra Alexandre de Moraes. Uma conduta considerada como uma característica rotineira da diplomacia brasileira. 

“Isso é uma característica do Itamaraty, usar mecanismos diplomáticos e técnicos para diminuir tensões e diminuir a capacidade de uma investida mais dura americana”, descreve Denilde Holzhacker. Ela afirma que existem, dentro do Governo Trump, diversos ‘subgrupos’, com características e prioridades distintas e é importante descobrir os mais “moderados” sobre o tema. 

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Existem ainda questões econômicas e geopolíticas que precisam ser consideradas. “Então, tem uma complexidade nesse relacionamento e na capacidade do governo brasileiro de lidar com o governo Trump que exige essa cautela e esse olhar, esse papel de bastidor na atuação do próprio Itamaraty”. “Agora, se isso se concretizar, o Brasil terá que evidentemente retaliar. O Brasil também pode estabelecer sanções quanto a autoridades americanas, isso é perfeitamente normal. E pode, claro, protestar publicamente e internacionalmente nos espaços para isso”, ressalta Martonio Mont’alverne. 

A relação com a política brasileira

Denilde Holzhacker pondera ainda que existe outro elemento que também influi na postura cautelosa do Itamaraty sobre a questão: a atuação de lideranças da oposição junto a parlamentares republicanos e aos círculos trumpistas. “A mobilização tem sido feita pelos bolsonaristas. O filho do Bolsonaro (Eduardo) está nos Estados Unidos fazendo uma campanha para que tenha sanções, na alegação de que o inquérito e que toda investigação sobre o 8 de janeiro e sobre a atuação do governo Bolsonaro é ilegítima”, ressalta a professora de Relações Internacionais.

Eduardo Bolsonaro é alvo de inquérito no Supremo Tribunal Federal por atuar publicamente junto ao governo dos EUA pela aplicação de sanções a autoridades brasileiras. Ele está nos Estados Unidos desde fevereiro. A abertura do inquérito atende a um requerimento da Procuradoria Geral da República (PGR).

Em passagem por Fortaleza, na última sexta, Jair Bolsonaro disse que Eduardo deixou de lado “toda a vida” para “lutar por nós lá de fora”. O ex-presidente disse ainda que terá a “ajuda” dos Estados Unidos. “Tenho certeza que venceremos. Não é fácil, mas nós venceremos. Com a ajuda de Deus e também com a ajuda de outro país lá do Norte“, disse durante discurso no 2º Seminário de Comunicação do PL.   

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“E tem muitos deputados bolsonaristas, para além do Eduardo Bolsonaro, que já tem esse objetivo, desde que o Lula voltou ao poder, de usar os Estados Unidos para enfraquecer o atual governo brasileiro, de mobilizar forças políticas nos Estados Unidos”, explica Guilherme Casarões. 

Ele ressalta que Eduardo Bolsonaro “não é nem de longe uma figura prioritária para o Trump”, mas “não pode ser minimizado” a inserção que ele tem em círculos trumpistas e a proximidade a figuras do entorno do presidente dos EUA. 

“O fato de Eduardo Bolsonaro agora estar nos Estados Unidos, ter se licenciado de seu mandato de deputado e estar lá basicamente dedicado ao lobby bolsonarista, ao lobby, vamos dizer, anti Alexandre de Moraes, anti Lula e pró Bolsonaro, isso também é um ponto importante para a gente levar em conta, principalmente se considerarmos que ano que vem tem eleição no Brasil”, completa o cientista político.

Com posturas antagônicas, tanto Trump como Lula manifestaram, publicamente, o apoio aos opositores um do outro nas últimas eleições de cada país — Lula defendeu Kamala Haris na disputa pela Casa Branca em 2024, enquanto Trump chamou Lula de “lunático” e apoiou Bolsonaro em 2022. 

Para Martonio Mont’alverne, a perspectiva de uma sanção “contra a institucionalidade brasileira”, representada por Alexandre de Moraes, “sem nenhum fundamento jurídico” indica apenas “que o presidente dos Estados Unidos utiliza o cargo que tem para agradar seus aliados no Brasil”.

“O que nós podemos ver, nessa erosão democrática dos EUA, é que Donald Trump tem utilizado o cargo de presidente da República para satisfação de pedidos de seus aliados internos, nos Estados Unidos, mas também externos, como a família Bolsonaro. Isso é preocupante, porque isso rouba qualquer princípio de impessoalidade que também vigora uma legislação americana”, afirma.

Big Techs, China e a América Latina

Outros elementos também influenciam neste cenário. Um deles é a influência de grandes plataformas digitais na Casa Branca, as chamadas Big Techs. Na última sexta, Elon Musk, dono do X, deixou o Governo Trump, mas deve continuar a ter atuação junto ao presidente estadunidense. 

Outras plataformas, como Meta e Google, também possuem prestígio junto à administração de Donald Trump. Vale lembrar que Musk se envolveu pessoalmente em uma queda de braço com Alexandre de Moraes, mas a decisão do ministro do STF acabou prevalecendo. 

“De certa maneira, nos mostra que qualquer preocupação com o Brasil e com Alexandre de Moraes, pode ter o dedo do Elon Musk. Não só para se vingar do Alexandre de Moraes, mas para defender o seu próprio interesse, que é o ambiente digital sem regulação”, afirma Guilherme Casarões. 

Por isso, aponta Denilde Holzhacker, todos os mecanismos que têm sido citados pelo secretário de Estado do Governo Trump, Marco Rubio, podem ter a intenção de atingir não apenas o Brasil, principalmente quanto a restrição de vistos de autoridades estrangeiras. “Ela está relacionada também ao que o governo americano está fazendo na Europa, contra a regulação das redes (sociais). Não é só o caso do Brasil, mas também o caso europeu que entra nessa narrativa do Rubio”, defende.

Existem ainda elementos da geopolítica, como a relação entre o Brasil e a China — que vive tensão crescente com os EUA — e a importância do nosso país dentro da América Latina. 

“O Trump entende que o Brasil é um país muito importante na América Latina. E a política americana para América Latina é uma política, e o Marco Rubio é a expressão disso, é uma política mais de intervenção e de que é preciso garantir que países da América Latina sejam mais próximos e aliados americanos e usando uma tática que eles já usaram em diversas fases do mundo, que é pela pressão aos governos locais”, explica Denilde Holzhacker.

“O Brasil é um dos principais aliados da China no mundo, não só na América Latina, mas no mundo. (…) A política externa brasileira de buscar manter-se aliada aos diversos países, começa a ter uma pressão americana, de que o Brasil tem que optar ou pelos Estados Unidos ou pela China”, completa Holzhacker

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