Uma sessão de tortura, ocorrida entre a noite do dia 16 e a madrugada de 17 de agosto deste ano, em Monsenhor Tabosa, no interior do Ceará, imposta por integrantes da facção criminosa Comando Vermelho (CV) deixou duas pessoas mortas e duas feridas. O atentado criminoso foi transmitido ao vivo para um dos chefes do grupo por meio de ligação telefônica.
Após a descoberta do caso, forças policiais da região se mobilizaram e prenderam três suspeitos de participação no crime. Dois deles, tiveram as prisões convertidas em preventiva pela Justiça estadual em audiência de custódia. Já a mulher, grávida de sete meses, foi para prisão domiciliar com uso de tornozeleira eletrônica.
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O que aconteceu
Conforme informações obtidas pela reportagem em documentos da investigação do caso, tudo teria começado volta das 20h30 do dia 16 de agosto, no Bairro Jucás, em Monsenhor Tabosa. Duas das quatro vítimas, os irmãos adolescentes de 15 anos e 17 anos, estavam em casa com a mãe quando foram abordadas por quatro homens.
Eles foram ameaçados com armas e tiveram que seguir com os acusados, mesmo após a mãe deles tentar demover os criminosos da missão. Ao chegarem em uma estrada carroçável próximo ao Açude Jucás, já havia outro integrante do grupo criminoso à espera deles.
Os dois irmãos então foram amarrados com as próprias camisas e passaram a sofrer agressões com pedaços de pau. A tortura, descrita como uma “disciplina” imposta pelo Comando Vermelho, foi motivada pela suposta participação das vítimas em roubos e furtos de motocicletas na região.
Os agressores transmitiram a tortura ao vivo para um homem identificado como Geovane da Costa de Sousa, o ‘Makinista’, suposto líder do grupo criminoso “Tropa do Makinista”, que atua em Monsenhor Tabosa em nome do Comando Vermelho.
Mulheres torturadas
Enquanto parte do grupo continuava as agressões contra os dois menores de idade, outros acusados foram em busca de mais duas vítimas: as mulheres identificadas como Paula Irene Feitosa da Silva, de 29 anos e a esposa dela, Mariana Martins de Sousa, de 32 anos.
Elas foram retiradas de casa e levadas para o local onde os adolescentes estavam e também foram submetidas à tortura. Os criminosos, conforme as investigações, teriam espancado as mulheres com paus, socos e usado sacos com água para sufocamento.
Depois da sessão de tortura que durou cerca de quatro horas, as vítimas, bastante lesionadas, foram “liberadas” pelo grupo formado por, pelo menos, sete criminosos. Os dois adolescentes e as duas mulheres saíram com vida do matagal, mas Paula Irene caiu no caminho e morreu.
Vítimas chegaram a receber ajuda de moradores
Durante a fuga dos algozes, as vítimas pediram ajuda a moradores e disseram que tinham sofrido um acidente de moto. Uma ambulância foi acionada e levou os feridos para o hospital.
Inicialmente, o caso foi reportado para a Polícia como um acidente de trânsito, mas denúncias anônimas e informações de populares logo apontaram para um ato criminoso.
A reportagem apurou que o adolescente de 17 anos teve as duas pernas e um braço fraturados. Ele foi levado para um hospital de Monsenhor Tabosa e depois transferido em estado grave para Sobral, mas não resistiu aos ferimentos e morreu no último dia 18.
A mulher sobrevivente, Mariana Martins, fugiu do hospital após ser medicada e não foi mais localizada. Durante a sessão de tortura, os criminosos mandaram que ela saísse da cidade. O outro adolescente ferido teve alta médica.
Após as diligências iniciais, policiais militares identificaram os suspeitos de envolvimento no crime. Dos sete indicados como participantes, três foram presos e um adolescente de 16 anos apreendido: Victor Emanoel Silva Felix, o ‘Vitão Marreta’, de 23 anos; Iranildo de Sousa Barbosa, o ‘Iran’, de 36 anos; e Ana Beatriz Estevão da Silva, a ‘Bia’, de 22 anos; e um adolescente.
Ficha criminal
Victor Emanoel é apontado como membro do grupo criminoso “Tropa do Makinista”, que atua em Monsenhor Tabosa em nome do Comando Vermelho. Ele era considerado braço direito de Wanderson Gabriel Matias, o ‘Gabriel da Mídia’, e também chegou a ser liderado por Bruno Coelho Alves, o ‘Psicopata’, ambos já presos.
A função principal de ‘Vitão Marreta’, segundo as investigações, seria a comercialização de drogas e executor das “disciplinas” (castigos da facção), agindo como “olheiro” nas áreas dos bairros COHAB e Carrapicho e monitorando as forças de segurança. Ele também é investigado por suspeita de praticar outras torturas, inclusive efetuando disparos de arma de fogo nas mãos de uma vítima por suspeita de furto.
Legenda:
Foto:
Em aplicativos de redes sociais, os criminosos mandam mensagens com ameaças a rivais ou a quem desobedecer a ordem do grupo
Divulgação
Já Iranildo de Sousa possui histórico criminal, respondendo a procedimentos policiais por tentativa de homicídio, no ano de 2014, receptação, em 2019, e tráfico de entorpecentes neste ano.
Ana Beatriz Estevão não possui passagens pela Polícia. No interrogatório, ela disse ter sido obrigada a participar da tortura para provar que não estava envolvida no roubo da moto, mencionando que ‘Vitão’ a ameaçou caso não participasse.
Durante as prisões, celulares, uma quantia em dinheiro, (R$ 586,00) foi apreendida com Iranildo, além de uma porção de maconha. Uma jaqueta usada por um dos suspeitos e que aparece nos vídeos da tortura foi apreendida com o adolescente. Na residência de outro suspeito, os policiais encontraram sete espingardas, tipo “socadeiras” e material de recarga.
Prisões preventivas e domiciliar
Na última segunda-feira (18), foi realizada a audiência de custódia na Comarca de 6º Núcleo Custódia e Garantias, em Crateús. O Ministério Público deu parecer pela homologação da prisão em flagrante e decretação da prisão preventiva de todos os envolvidos, destacando a gravidade dos fatos e a conexão com o Comando Vermelho.
O juiz de Direito, Arthur Moura Costa, homologou o auto de prisão em flagrante. Iranildo de Sousa e Victor Emanoel Silva Felix tiveram as prisões preventivas decretadas.
A decisão, conforme sentença obtida pela reportagem, foi baseada na gravidade concreta dos crimes (tortura com resultado morte), a crueldade, o modus operandi que revela periculosidade e ousadia (sequestro, transmissão ao vivo), e o vínculo com a facção criminosa Comando Vermelho, que impõe sua “lei” na região.
O Poder Judiciário analisou o caso e considerou o risco de reiteração criminosa e a necessidade de garantir a ordem pública. Já a prisão em flagrante de Ana Beatriz Estevão da Silva foi convertida em prisão domiciliar com monitoramento eletrônico.
A Justiça considerou que a jovem é mãe de duas crianças menores de 12 anos e está no sétimo mês de gestação, e não possui antecedentes criminais.
O juiz ressaltou que, embora ela tenha participado das agressões, os fatos ocorreram fora do ambiente familiar e não há elementos que indiquem risco direto aos filhos. A decisão teve como fundamento o princípio da prioridade absoluta dos interesses da criança e o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF).
Ela deverá permanecer em casa, podendo sair apenas para atos processuais ou atendimento médico (próprio ou dos filhos), e utilizará tornozeleira eletrônica por três meses. O descumprimento das condições pode levar à revogação da prisão domiciliar e a decretação da prisão preventiva.
O processo foi enviado para a Vara de Delitos de Organizações Criminosas (VDOC), com sede na Comarca de Fortaleza, para a continuidade das investigações.
Suspeitas de abuso policial
Durante a audiência de custódia, Iranildo de Sousa e Victor Emanoel alegaram ter sofrido abuso policial durante as prisões. Ana Beatriz Estevão da Silva, por sua vez, negou ter sofrido qualquer violência.
Segundo os documentos obtidos pela reportagem, apesar dos relatos, os exames periciais iniciais de lesão corporal realizados nos três presos não constataram vestígios de ofensas à integridade física deles. Na própria audiência, o juiz afirma não ter observado lesões visíveis que indicassem abordagem violenta.
No entanto, em cumprimento às Resoluções do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), o juiz entendeu que o relato de excesso na atuação policial era suficiente para acionar os órgãos de controle, independentemente de juízo de valor inicial.
Com esse entendimento, o magistrado solicitou a realização de exame complementar para Iranildo e Victor Emanoel, respeitando o Protocolo de Istambul, a fim de responder a quesitos específicos sobre a ocorrência de tortura ou maus-tratos.
Além disso, determinou a comunicação dos relatos de suposto abuso estatal à Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública e Sistema Penitenciário (CGD), ao Ministério Público do Estado do Ceará (Controle Externo da Atividade Policial), ao Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública (NDHDP), à Polícia Judiciária, e ao Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e de Execução de Medidas Socioeducativas (GMF). Os órgãos devem avaliar a necessidade de instauração de investigação.