O mês de julho une o clima de férias e o período julino — quando, principalmente nordestinos, alongam as festas de São João e continuam a celebrar essa tradição. O resultado disso são festas em diversas cidades cearenses, com a presença de cantores e bandas consagrados da música. E, no meio disso, do clássico forró a dois até as coreografias, inclusive as disseminadas por plataformas como o TikTok, as danças contagiam todos, inclusive os prefeitos e as prefeitas cearenses. Eles têm sido presença marcada nos palcos, acompanhando artistas nas coreografias — com inúmeros registros, claro, nas redes sociais.
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Ao lado da dupla Claudio Ney & Juliana, o prefeito de Amontada, Flávio Filho, faz o passo da música “Marra de bandido”. A mesma música também foi dançada pela prefeita de Paraipaba, Ariana Aquino, que também colocou “toda a coreografia para jogo” ao lado da cantora Yaratche, vocalista da banda “Seu Desejo”. Também fazendo ‘dobradinha’ com o artista convidado teve o prefeito de Baturité, Heberlh Mota, que dançou um forró com a vocalista da banda Lagosta Bronzeada, Lana Gama.
Indo mais para o leste do Ceará, Granja sediou o Granchitão 2025 e, além das inúmeras atrações, também recebeu no palco não apenas o prefeito da cidade, Aníbal Filho, como gestores de cidades vizinhas, como Eurico Arruda (Viçosa do Ceará), Alex Nunes (Tianguá) e Edézio Sitônio (Coreaú) — na companhia das primeiras-damas, eles dançaram ao som do cantor Zezo.
Os exemplos ilustram um cenário visto por milhares presentes nas festas das cidades cearenses, e por uma quantidade ainda maior de pessoas em diferentes plataformas virtuais. E, se o destaque dos prefeitos pode ter impactos positivos para a imagem pública do gestor, o comportamento também precisa ser equilibrado, para não causar riscos judiciais.
Apesar de anos não eleitorais, como 2025, terem menos restrições quanto às condutas de agentes políticos, ainda existem limites legais, principalmente quando envolve eventos promovidos por meio de recursos públicos.
Há limites legais para a participação de prefeitos?
“É lógico que não há nenhuma vedação de um prefeito dançar num palco”, resume o professor e especialista em Marketing Político da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing), Alexandre Bandeira. “Ele é, a princípio, um cidadão comum que foi, entre aspas, chamado pelo artista e subiu ao palco”.
Existe, portanto, uma ausência de um critério objetivo de qual seria o limite para a projeção de um prefeito ou prefeita durante um evento público de entretenimento ou cultura — seja dançando ou não. O que não significa que não seja necessária atenção às regras impostas pela legislação brasileira para o cargo de chefe do Executivo.
Professor de Direito Eleitoral da FGV (Fundação Getúlio Vargas) São Paulo, Fernando Naisser cita o artigo 37 da Constituição Federal, que estabelece que toda a administração pública — prefeituras, governos estaduais e presidência da República — deve obedecer a determinados princípios, incluindo a impessoalidade.
“A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”.
Ainda nesse trecho, são estabelecidas as regras para a publicidade de “atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos”, no qual ficam proibidos “nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos”.
“Um show artístico, um evento, entra como uma modalidade de publicidade institucional”, avalia Naisser. Portanto, obrigado a seguir o critério de impessoalidade determinado pelo texto constitucional. “Ou seja, eu não posso ter um aproveitamento da pessoa física que está promovendo aquele evento, que se aproprie daquilo, enquanto aquilo, na verdade, é da prefeitura, é do governo do estado, é do ente público e não da pessoa privada”, explica.
A análise sobre se o princípio da impessoalidade foi desrespeitado precisa ser feito “caso a caso”. “Tem que fazer um estudo para saber até que ponto essas pessoas estão usando a máquina pública para fazer uma promoção pessoal”, pontua a professora de Direito Eleitoral da Universidade Federal do Ceará, Raquel Machado.
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Nestes casos, em que há excessos quanto à promoção pessoal fazendo uso de um evento público, é possível enquadrar a conduta em improbidade administrativa. Uma eventual condenação pode levar a “suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário”, elenca a Constituição Federal.
A fiscalização fica a cargo de órgãos de fiscalização, como o Ministério Público e a Câmara de Vereadores de cada município. Fernando Naisser cita, inclusive, que para além de uma ação de improbidade administrativa no âmbito do Judiciário, não podem ser excluídas análises políticas, “seja instaurando um processo, uma CPI ou um processo de cassação no âmbito da Câmara Municipal, se houver condições políticas para isso”.
“No ano eleitoral, além das mesmas regras que valem fora, a regra constitucional, a possibilidade de configurar improbidade administrativa, ainda tem a legislação eleitoral que vai dizer que ninguém pode abusar do poder político para se promover candidato”, continua Naisser.
Nestes casos, inclusive, a análise de mérito e a aplicação de punições, se for o caso, costumam ser mais rápidas. “Muitas vezes, há uma resposta antes mesmo das eleições ou pouco tempo depois”, diz. “Mas ainda não estamos no ano da eleição, então, pelo menos a conduta em si não tem impacto eleitoral, a não ser que esses vídeos sejam eventualmente utilizados em período eleitoral. Aí será outra questão”, destaca Machado.
‘Like não é voto’
Especialista em Marketing Político, Alexandre Bandeira pontua que existe a necessidade de “critério” do gestor municipal sobre as suas atitudes, para não acabarem enquadradas como improbidade administrativa, mas também fala dos riscos do ponto de vista da construção de imagem do prefeito ou prefeita perante os habitantes da cidade.
“Vamos tentar separar as coisas: a prefeitura tem obrigação de investir na cultura, no entretenimento, no turismo, porque essas festas, nós sabemos, atraem turistas de outras cidades. Tudo isso é importante”, afirma. “Mas essa linha tênue entre o prefeito que pega o dinheiro, investe em determinado artista, faz uma combinação de que o artista chame no palco para, a partir daí, ele correr atrás dos likes que estão por trás das redes sociais, isso precisa ter sempre muito cuidado”.
Bandeira afirma que existem benefícios para o gestor público. “A construção de um prefeito que não é tão sisudo, que é descolado, que é um cara mais próximo do povo, que é o amante da arte, aquela pessoa que mais acessível”, elenca. Essa projeção de imagens, conforme define Bandeira, é inclusive mais eficiente em uma comunicação política que acontece, cada vez mais, no digital.
O especialista lembra o caso da prefeita de Marituba, no Pará. Patrícia Alencar viralizou dançando de biquíni em um perfil privado no Instagram. Apesar das críticas, houve também um crescimento exponencial nos seguidores da prefeita – ela alcançou 1 milhão de seguidores após ganhar mais de 300 mil, em poucos dias.
“Então, a gente vive hoje num momento também muito, provocado pela questão das redes sociais, de uma política cada vez mais rasa e essa é uma grande preocupação. Onde os problemas da população às vezes ficam em segundo plano em detrimento de uma projeção de imagem do gestor principal”, argumenta.
“E não vou colocar só o prefeito, vou colocar o prefeito, o governador, o presidente da República, porque a gente vê isso acontecendo em todas as escalas. (…) Essa construção de imagem meteórica fundamentada não necessariamente na função pública do ator público, mas de repente numa aparição pública. Então essa é a grande preocupação”.
Quanto à eficácia dessa estratégia para melhorar a imagem junto à população, Alexandre Bandeira alerta para a quão “efêmera” pode ser a viralização. E que, se não associada a percepção de que os grandes eventos foram benéficos para a cidade, pode resultar no efeito contrário: de rejeição à figura do prefeito ou prefeita.
“O prefeito que sabe equilibrar as coisas é o prefeito que consegue crescer e cristalizar uma imagem de longo prazo junto à população. É o prefeito que vai poder ter um projeto político que não vai estar amarrado necessariamente a um like que ele receba na rede social, até porque a gente tem uma máxima que diz o seguinte: like não é voto. Então, os prefeitos que estão correndo atrás dessas aprovações nas redes sociais podem estar criando desaprovação no tecido social do seu município”, afirma.
Falhas na regulamentação de condutas do mundo digital
Se a eficácia para melhorar a imagem pública não é garantida, eventuais efeitos legais também precisam de uma comprovação robusta, conforme os especialistas em Direito Eleitoral entrevistados pelo PontoPoder. Contudo, eles admitem que a legislação não está pronta para as rápidas e constantes mudanças na comunicação política proporcionadas pelo ambiente digital.
“De um modo geral, a legislação não está preparada para a nova forma de comunicação política na internet. Ela chegou muito rápido e ainda existe muita dúvida sobre quais são os limites do uso dos espaços públicos pelos gestores”, ressalta Raquel Machado.
Ela pontua que, em casos eleitorais, existe uma maior jurisprudência sobre as condutas adotadas em plataformas virtuais. Mas reforça que é preciso avançar quanto à regulamentação do mundo digital e de quais os limites na comunicação feita nesses canais, principalmente quando envolve agentes públicos.
“Hoje, realmente o poder político está na comunicação digital. É muito forte. É claro que existem algumas exceções de cidades pequenas, onde o contato real e humano conta mais, mas em qualquer lugar com muito cidadão, é essa comunicação que conta”, diz. “Mas, de todo modo, é importante que não tenha promoção pessoal nos espaços públicos”.
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Fernando Naisser cita, especificamente, os perfis usados em plataformas virtuais, como Instagram e Facebook. No caso das páginas das prefeituras, é taxativo: “não pode ficar dando destaque à figura do prefeito”.
“Se faz, é tarefa do Ministério Público entrar com ação. Isso é improbidade administrativa, o Judiciário pode determinar que derrube essas postagens, pode responsabilizar o prefeito, pagar multa, pode até levar a cassação e inelegibilidade. Isso já está claro, que um perfil público não pode fazer esse tipo de divulgação”, defende.
Contudo, e quanto aos perfis pessoais de prefeitos e prefeitas? Não só deles, mas de quaisquer detentores de cargos eletivos no Brasil. “Falta ainda regulamentação”, reforça.
“Quais são os limites da atuação, do uso, enfim, da exploração daquilo que é produzido pelo poder público nos perfis pessoais? Porque, se eu sou prefeito, eu tenho uma equipe de audiovisual que me acompanha, eu entro numa obra, faço filmagens profissionais ali, faço uma edição profissional e pego isso e trago pro meu perfil pessoal. (…) Em que medida eu estou aqui desequilibrando o jogo?”
Portanto, mesmo com um amparo legal para a fiscalização em casos em que a projeção dada pela “dança dos prefeitos” possa extrapolar os limites constitucionais da impessoalidade, se usada para promoção pessoal, ainda existem brechas na legislação, ocasionadas pela rapidez nas mudanças na comunicação política impostas pela tecnologia.