Artigo da semana: O Sincericida

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Por
JOSÉ EPIFANIO PARENTE AGUIAR

“Diga a verdade e saia correndo”. (Provérbio iugoslavo).

De tão mirrado, Tiãozinho do Frete nunca representou perigo físico para qualquer contendor. No lugar onde chega, com voz tonitruante e sempre polêmico, esparrama sua presença pelo ambiente. A conta não fecha quando um curioso tenta saber quantas vezes ele apanhou ou correu de peia. As cicatrizes que carrega são amargas lembranças das encrencas em que se meteu. Quelóides tem, um no queixo, alguns nas costas e outros ao redor do umbigo: são rastros de um canivete cego que por um triz não o matou. Hoje, alguém diria que com a sua afoiteza é um típico sincericida, mas a sua língua, afiada como uma navalha ou comparável a uma corda que tenta enforcá-lo, não foi, até aqui, suficientemente eficaz para que ele recebesse um golpe fatal, de tanto encher o saco da boa gente nas rodas em que se intrometeu. Bofetadas, chutes, cadeiradas e garrafas quebradas no cocuruto não foram o bastante para dar-lhe o descanso eterno e o “bônus sossego” em vida aos que tanto azucrina.

O relógio marca duas da tarde, hora confirmada pelo ronco da barriga, sempre exigindo o feijão nosso de cada dia, quando Sandoval, cliente que sempre freta sua velha caminhonete, postado ao seu lado, chama-o para almoçar:
– Tô trespassado de fome, como estamos próximos do quiosque da Dinorá, melhor encostar e almoçar.
Em Palmas-TO, onde ambos moram, o calor beira os quarenta graus. No quiosque já vago, dois garçons ociosos jogam dominó. O frenético balé de bandejas dançando na ponta dos dedos já tinha acabado. Na mesa ao lado, dois outros retardatários, velhos conhecidos, sentam-se e pedem o famoso chambari, não sem antes cumprimentar cordialmente os dois que chegaram antes.

Sentados em brancas cadeiras plásticas junto à mesa, também de plástico e forrada com toalha puída, porém, limpinha, Sandoval e Tiãozinho malinam no paliteiro, cheiram o molho de pimenta malagueta, elogiam a bonita farinha sobre a mesa e sacodem a mão na cara de uma ou outra mosca invasiva enquanto aguardam a vez de serem servidos.

Tiãozinho, com seu faro e ouvidos aguçados de veado em mata onde circula onça, cresce sua orelha na direção da mesa ao lado e começa a ouvir a chorosa ladainha do ex-pretenso candidato a vereador refugado na convenção do seu partido, dirigida ao companheiro de mesa, seu compadre, que era todo ouvidos.

– Pois é! Tirei três mandatos seguidos de vereador em Lizarda-TO. Cheguei a Palmas, faz um ano e oito meses, fixei residência aqui no bairro Taquari, transferi meu domicílio eleitoral, mantive minha filiação e a fidelidade ao partido, garanti os compromissos de sempre com o deputado estadual que sempre apoio e até acertei ao apoiar o pré-candidato a prefeito que ganhou a convenção, mas eu, mesmo com a minha experiência e serviços prestados aos lizardenses, fui refugado. Os convencionais não me deram votos que dessem para encher nem o papo de um pardal, logo eu, tocantinense lavrador, com terra nas unhas, um curraleiro de Lizarda que iria contribuir com o candidato majoritário, não só pra ganhar: iria ajudá-lo a administrar Palmas…

Tiãozinho, agora, que nem um cachorro amarrado, vendo e sentindo a caça tão próxima, ganindo, cavando com as unhas e esticando a corda, enche o feirante Genivaldo, seu cliente de frete, com certa apreensão: “Vai já se meter”, – pensava. Até o alerta em cochicho:
– Não se meta!
Entretanto, o “não se meta” soa como uma voz de comando que causa efeito contrário: Tiãozinho tora a corda e parte para o ataque, como se diz por aí, latindo grosso:
– Muito me admiro! Quero falar sem ser interrompido, se me derem licença. Veja bem! Você chegou das profundezas do sertão, de uma região que poucos conhecem, achando que com três mandatos de vereador numa cidade pequena, com pouco mais de quatro mil almas, poderia chegar e apear em Palmas, uma cidade com mais de 200 mil eleitores, pendurar a cangalha aqui no Taquari e, em curto espaço de tempo, sem nenhum serviço prestado, conquistar votos suficientes para se eleger?

Os quatro comensais, com seus pratos cheios de chambari, de tão focados, mal levavam o garfo à boca.
Tiãozinho continuou:
– Só porque você conhece alguns migrantes que fizeram o êxodo Lizarda-Palmas acha que eles votariam em você por bairrismo ou gratidão por algum favorzinho que você fez há tempos? Você tá muito enganado. O curandeirismo social que você pingava lá, como gota d’água em tombador de areia, se feito aqui, seria gota d’água também, mas agora cairia num oceano de eleitores, equivalente ao oceano da tua ilusão. Você sabe ao menos o que é um Plano de Governo? Uma Lei Orgânica de Município? Um Plano Diretor? O que é Democracia, IDH, PIB? Já ouviu falar sobre o analfabeto político do Bertold Brecht? Aposto que você não faz nem a distinção entre esquerda e direita, que não tem nem noção do que é ideologia. Tá vendo? Tive pouca escola, mas leio. Desculpe-me, mas, dos mais de 300 candidatos que vão concorrer por vinte e três vagas na Câmara de Vereadores, a grande maioria é formada por aventureiros, e isso certamente te deixou à vontade, até porque o sistema político e a Lei dos Partidos Políticos são tão frouxos que nem selecionam com o devido rigor os candidatos na convenção. Quase todos estão atrás do poder pelo poder em si e de dinheiro, querendo encher o saco sem fundo da ganância desmedida. Sim! Alguns poucos são honestos, sonhadores e honrados, até ingênuos. Não percebem que em política não se chega à vitória sem fazer concessões, sem ferir a ética. Com sorte, alguns brilharão como líderes e no futuro gravarão o nome na história, mas cederão em parte, ou totalmente, os seus princípios e valores. Amigão! Serviços prestados podem credenciar um candidato, mas promessas e tapinhas nas costas, quase não, nem sempre fazem o efeito desejado.

O ex-postulante, amarelo de raiva, com as orelhas pegando fogo, apertando a faca de mesa com força, interrompe-o:
– Você deve ser um daqueles críticos que querem salvar o mundo, mas não arrumam a cama em que dormem e não lavam o prato em que comem! Você não me conhece como devia!
– Ora! Não só o conheço como também escutei suas lamúrias! Políticos como você tem aos montes por aí! Inescrupulosos, querem surrupiar o dinheiro dos pagadores de impostos, apelidado pomposamente de dinheiro público, mas não passam de gigolôs, explorando velhas senhoras que chamam de instituições!
O ex-postulante reagiu:
– Vá lá em Lizarda e pergunte quem é o Izidorinho da Farinha, Vá!
Tiãozinho lhe responde:
– O que você era lá já não o é aqui! Bem-vindo ao anonimato!
Izidorinho insiste:
-Tá vendo? Você não sabe mesmo quem eu sou!
– Nem seria preciso! Você é um tipo comum, segue um padrão bem conhecido! Nem o melhor marqueteiro faria de você um pavão colorido, um encantador de eleitores! Você arribou de Lizarda pra cá, vendeu a bela chácara que tua mulher herdou, eu fiquei sabendo, aí pegou a estrada de chão cheia de costelas de vaca e chegou de véspera, louco pra se eleger. Perdeu tempo, dinheiro e pra sorte da família nem saiu candidato, senão o estrago seria maior por causa das dívidas de campanha.

Neste exato momento, o ex-postulante, num rompante, levanta-se da cadeira e parte, com a faca na mão, para cima de Tiãozinho do Frete. Este, ágil, levanta-se e corre para o portão de saída.
O compadre do indignado com muito custo o contém:
– Você tá maluco? Uma comida forte como chambari não pode fazer bem misturada com briga! Você quer entortar a boca? ter uma sapituca? Um AVC? Esqueceu-se que tem pressão alta? Abre essa boca, põe um sublingual. Você mesmo já me disse que política é a arte de engolir sapo! Cadê tua sabedoria?
Izidorinho da Farinha arranca um pouco da sabedoria guardada na cachola e fala:
– Mas o sapo pelo menos é liso e macio. Esse aí é um porco-espinho! Nem o Diabo dá conta de engolir!
Tiãozinho, sentindo-se seguro pela boa zona de fuga que cria ao afastar-se com raiva por ter deixado o chambari pela metade, de longe acena para seu companheiro pagar a conta e mais insolente voltou à carga:
– Izidorinho, seu comedor de farinha, você é socialmente invisível, não tem presença! Tivesse dinheiro e estaria almoçando, todo pancoso, em churrascaria, para aparecer, porque todo político é vaidoso. Eu não, tô aqui, porque gosto de chambari e do tempero da Dinorá! Outra coisa: Pobre não gosta de votar em pobre e ninguém gosta de votar em velho. Você é um cinquentão com cara de oitentão! Olha a tua pele tostada e pegajosa de tanto sol, olha os teus trajes, as botinas desgastadas e empoeiradas, o chapéu amassado. Acredite: Você é um f*dido, eu também sou um f*dido, a maioria dos brasileiros é f*dida. Isso não é opinião, é uma dura constatação! Recém-chegado que é, o monturo do teu quintal ainda nem azedou. Outra coisa: Nada tenho contra Lizarda. Ela merece meu respeito. Não é por você ser de lá, é a forma como você chegou. Veio cru. Se tivesse algum serviço prestado ao povo de Palmas, somado ao carisma que você não tem e nem sabe o que é, aí sim, poderia ganhar alguma consistência eleitoral, tornar-se uma panela com um bom pegado, fosse de onde fosse. Você está filiado em alguma associação? Presta serviço voluntário em alguma ONG?Dessas que cuida de menino carente ou morador de rua? Ou de alguma que cuida de gato ou cachorro abandonado? Cadê tua formação? Tudo bem, formação acadêmica não da caráter e nem sempre desenvolve o talento. O mundo tem uns poucos analfabetos sábios, formados pela escola da vida e milhares de doutores patetas, deformados por faculdades fajutas feitas aos cochilos, mas se você tivesse um diploma qualquer, ele possivelmente te ajudaria a estufar o peito. Quando o cara é bom no que faz, elimina ou abafa quase todos os preconceitos contra si. Também, se você fose endinheirado e soubesse mobilizar gente, tivesse botado na convenção cem moçoilas com camisetas e bandeirolas, gritando “Zidorim, Zidorim, tem muitos votos sim!”, e ainda cantando um jingle idiota enaltecendo os teus feitos, mesmo que fosse mentira, possivelmente sairia de lá candidatíssimo. Os convencionais ficariam impressionados. Lá, entretanto, você estava sumido. Desculpe-me! Você é um Zé ninguém querendo virar um Zé alguém. Vá lá! Em Lizarda, sim, você era um Zé alguém. Se te servir de consolo, no Brasil, e até nos Estados Unidos, os Zé ninguém são encontrados às pencas. Como você vê, eu também sou um, não estou lhe esnobando.
Dinorá, dona do quiosque e da tenda, percebendo que a ladainha está cada vez mais esticada, enquadra os exaltados:
– Tá na hora de parar! Querem brigar!? O lugar é na rua. Se fosse em horário de movimento, vocês teriam me dado um grande prejuízo. Chega!
– O ex-vereador e ex-postulante, acomodado no assento, extremamente estressado, joga a toalha, porém, amarrada a uma ameaça:
– Tá bom! Tá bom! Tô conformado! Quase todo mundo é lascado! Eu também sou! Já chega! Vá embora, filho do Satanás, antes que eu me levante outra vez! Só que agora será para te sangrar do jeito que eu sangro porcas. Elas ao menos tem a carne boa. A tua não presta nem pra fazer sabão.

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*SINCERICIDA: é aquele que expressa opiniões e fatos sem refletir sobre o impacto no mundo ao redor, desconsiderando os sentimentos e desejos dos outros.

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