A cada 24h, dois bebês nascem de mães crianças ou adolescentes no Ceará – Ceará

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Todo dia, dois bebês nascem do ventre de meninas de 10 a 14 anos de idade no Ceará. A média é baseada nos 664 nascimentos oriundos de gestações na infância ou adolescência em 2024 – menos da metade dos 1,4 mil de dez anos atrás, mas igualmente arriscados para a saúde e a vida de mães e bebês. 

Os dados são do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc), e refletem ainda uma questão anterior a todas as outras: toda gravidez de menina menor de 14 anos é resultado de um estupro de vulnerável. Pelo Código Penal, o sexo com pessoas abaixo dessa idade é crime, independentemente de suposto consentimento.

No Ceará, além dos mais de 600 filhos de menores de 14 anos registrados em 2024, outros 11,6 mil bebês nasceram de meninas com idades entre 15 e 19 anos, faixa etária que, conforme autoridades de saúde, ainda amarga múltiplos riscos.

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Em Fortaleza, de acordo com a Secretaria Municipal de Saúde (SMS), 8,8 mil bebês nasceram de mães com idades entre 10 e 19 anos, no período de 2022 a 2024. O número, observa a Pasta, “vem apresentando redução progressiva”:

  • 2022: 3.133 partos; 
  • 2023: 3.032 partos;
  • 2024: 2.718 partos. 

Em 2025, até a última quarta-feira (23), foram registrados 1.958 partos nessa faixa etária, conforme a SMS. “Adolescente com suspeita de gravidez deve procurar uma das 134 unidades básicas de saúde para confirmação e início precoce do pré-natal. Em situações de violência, ela é acolhida e encaminhada às instituições especializadas”, frisa a Pasta.

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Riscos e despreparo

Para Ana* (nome fictício), 15, a gestação veio como “uma bomba” logo após completar 14 anos. A menina descobriu a gravidez após uma consulta de rotina. “Foi um descuido nosso mesmo, não planejei. Mudou tudo, né? Toda a minha vida. Mas o pai tá ajudando e estamos levando”, relata a adolescente, moradora da periferia de Fortaleza.

A falta de noção de risco e de conhecimento sobre os métodos preventivos é uma das justificativas mais frequentes entre as meninas que engravidam e buscam assistência, como relata Zenilda Bruno, médica ginecologista e chefe da Divisão Médica da Maternidade Escola Assis Chateaubriand (Meac).

A Meac, unidade de saúde do Complexo Hospitalar da Universidade Federal do Ceará (CH/UFC), é um dos equipamentos de saúde referência na assistência multidisciplinar a meninas que engravidam na infância ou na adolescência. Lá também é ofertada a possibilidade de aborto às menores de 14 anos.

A imagem mostra a fachada da Maternidade Escola Assis Chateaubriand, com uma placa alta e vermelha indicando EMERGÊNCIA. Há também uma placa de sinalização de trânsito de Proibido Estacionar com a indicação Embarque e Desembarque. Um carro preto e algumas pessoas são visíveis na rua ao lado.

Legenda:
Maternidade Escola é um dos equipamentos públicos do Ceará que dão assistência a adolescentes grávidas

Foto:
Lucas Falconery

“A menina tem mais riscos do que uma mulher de 20 a 30 anos, que é a faixa ideal pra ter bebê. Principalmente aquelas abaixo de 15 anos têm mais risco de morte por eclâmpsia, anemia, hemorragia e infecção. Entre as de 15 a 19 anos, o risco é menor, mas ainda superior às da faixa etária ideal”, alerta a médica.

Somadas às questões de saúde física, as psicossociais “são ainda maiores”, como avalia Zenilda. “Em geral, a menina para de estudar. Após 5 anos, apenas 30% voltam à escola, porque não têm com quem deixar o bebê, não têm apoio familiar”, lamenta. 

32%

das meninas que engravidam no Brasil têm uma segunda gestação ainda na adolescência, como revela Zenilda Bruno.

Se os efeitos da gravidez na adolescência impactam diretamente a escola, é também lá que deve ser pautada a prevenção, segundo opina a médica da Meac. Para Zenilda, reduzir os índices de gestações precoces deve ser trabalho conjunto entre saúde, educação e Justiça.

“A maioria das meninas não acreditava que ia engravidar. É um despreparo, não têm a ideia de prevenção, muitas não têm orientação dos pais. Quanto mais jovens, menor a possibilidade de usarem método anticoncepcional. É o pensamento mágico: ‘comigo não vai acontecer’”, frisa.

Gravidez fruto de crime

Se gravidez na adolescência já é, em si, tópico caro à saúde pública e à proteção de crianças e adolescentes, gestações de meninas abaixo de 14 anos de idade têm agravante à parte: são assunto de justiça. Para reforçar: resultam de ato criminoso de estupro de vulnerável, cuja pena-base varia de 8 a 15 anos de prisão.

Os casos, porém, se multiplicam na Meac. “Elas são orientadas pra, se quiserem, fazer aborto. E todos os casos são encaminhados ao Conselho Tutelar, porque é um crime. Avisamos à adolescente e à mãe, mesmo que a menina diga que admitiu. A lei não consente que ela tenha relação mesmo que queira”, salienta Zenilda. 

No Brasil, o aborto é legalizado em três situações:

  • se não houver outro meio de salvar a vida da mulher;
  • se a gravidez resultar de estupro;
  • se o feto for anencéfalo (má-formação cerebral).

“Existe a menina que queria e a que não queria ter relação sexual. Tentamos sempre captar essa ideia, se foi abusada com violência e ameaça ou se foi um namoro. De qualquer forma, é dado a ela o direito de retirar o bebê”, pontua a médica.

Outra alternativa é a entrega legal da criança para adoção. “A menina que não quer abortar, mas quer doar, ela não vê o bebê, não amamenta, não cria afeto. Isso é trabalhado durante a gravidez. Ou seja, há três opções: abortar, doar ou criar o bebê”, resume.

Em 2024, pelo menos 67 meninas de 10 a 14 anos abortaram no Ceará. Neste ano, até maio, já foram 32 casos. Os dados são do Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH/SUS) e se baseiam em internações de meninas por interrupções registradas em hospitais públicos, seja o procedimento espontâneo, por razões médicas ou outras causas.

Agressores são pessoas próximas

As vítimas com idade entre 0 e 13 anos representam quase 62% de todos os estupros cometidos no Brasil. Seis em cada dez desses casos (65%) acontecem dentro da residência das meninas, segundo dados do Anuário de Segurança Pública de 2024.

O levantamento, que engloba todos os estados brasileiros e o Distrito Federal, também traz a justificativa disso: é que 87% das vítimas de estupro de vulnerável que têm 0 a 13 anos de idade são violentadas por algum familiar ou conhecido.

Noêmia Landim, supervisora do Núcleo de Atendimento da Defensoria na Infância e Juventude (Nadij) da Defensoria Pública do Estado (DPCE), alerta que o estupro de vulnerável é um crime de ação penal pública: ou seja, não precisa ser denunciado somente pela vítima.

“Muitas vezes isso acontece e o agressor não responde por nada, então é preciso que chegue ao conhecimento das autoridades, para ele necessariamente responder pelo crime. Havendo conhecimento de um conselheiro tutelar, de um agente de saúde, por exemplo, ele tem que denunciar. Não pode ser conivente”, sentencia a defensora.

Noêmia informa ainda que “caso pessoas próximas da vítima saibam do caso, podem procurar o Conselho Tutelar, que procederá com a denúncia”. Além das consequências judiciais, o agressor também pode ser condenado a pagar indenizações por dano emocional e, ainda, ter instaurada contra si uma medida protetiva.

“O que nos preocupa muito é que, geralmente, esses agressores são pessoas próximas à criança: pai, padrasto, tio, vizinho. E ocorrem dentro de casa. O combate tem que envolver toda a rede de proteção: assistência social, saúde, educação, segurança pública e judiciário. É complicada a prevenção se não for em rede”, pondera a supervisora do Nadij.

Como prevenir a gravidez na adolescência

Os profissionais são unânimes ao afirmar que a prevenção deve trabalhar em várias frentes. A médica Zenilda Bruno aponta que a taxa de adolescentes grávidas em Fortaleza é, hoje, cerca de 10%, semelhante às de capitais do sul e do sudeste. Há cidades do interior cearense, contudo, em que um em cada cinco bebês é filho de adolescentes.

“É um trabalho que deve ser continuado nos postos de saúde, orientando sobre o uso de métodos anticoncepcionais; na escola, falando da prevenção de gravidez, dos riscos, principalmente na parte psicossocial. Que a menina vai parar de fazer o que gostaria no futuro por uma gestação no momento que não é adequado”, recomenda Zenilda Bruno.

Imagem mostra fachada de um posto de saúde de Fortaleza. Um homem e uma mulher estão de costas entrando na unidade.

Legenda:
Postos de saúde ofertam métodos contraceptivos e orientações a meninas e mulheres de Fortaleza

Foto:
Thiago Gadelha

Outro ponto a ser trabalhado é o uso do implante subdérmico anticoncepcional, ofertado na Meac a adolescentes que foram mães e que desejam o método. “É um trabalho importante e muito mais aceito quando a menina já engravidou”, pondera a médica. 

“É mais fácil tanto ela aceitar como a mãe ou pai. Quando uma menina de 10, 11 anos nem pensa nisso, é mais difícil. O que temos que deixar claro é que o método existe e é possível de ser usado”, orienta.

A ginecologista destaca ainda a importância de profissionais de saúde da família “abrirem a cabeça” sobre o assunto. “Pra evitar a primeira gravidez tem que ser no posto de saúde, ele tem que dispor dos métodos de orientação. Que as equipes multiprofissionais abram a cabeça”, reforça. 

Não adianta proibir que a menina tenha atividade sexual, adianta prevenir a gravidez. Quando fala dos métodos, você não estimula a atividade sexual. Isso é mito.


Zenilda Bruno

Médica ginecologista na Maternidade Escola Assis Chateaubriand (Meac)

Métodos contraceptivos – como pílulas, injetáveis, dispositivo intrauterino (DIU), preservativos e o próprio implante subdérmico – também são disponibilizados em postos de saúde, como indica Lea Dias, assessora da Saúde da Mulher da SMS. Também nas unidades é trabalhada a educação em saúde.

Mas além de tudo isso, como destaca a defensora pública Noêmia Landim, também é fundamental fortalecer a rede de proteção e o judiciário, para erradicar os casos de estupro e de estupro de vulnerável – quando a vítima, em definitivo, não tem opção de “prevenir”. 

“A violência sexual contra crianças tem muito a ver com a desigualdade social, onde incide mais o machismo e a erotização precoce das meninas. É toda uma cultura que contribui para que esses crimes aconteçam. É preciso atuar nisso.”

Onde buscar ajuda

A Casa da Criança e do Adolescente, com funcionamento análogo à Casa da Mulher Brasileira, é um complexo que concentra delegacia e todos os equipamentos e órgãos de proteção a meninas e meninos, de domingo a domingo, 24 horas por dia.

A Casa está situada na Rua Capitão Melo, 3883, no bairro São João do Tauape, em Fortaleza. O telefone para contato é (85) 98174-3942.

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