Arte drag, forró e resgate dos anos 2000: Valentina Club traz novo brilho à vida noturna de Fortaleza – Verso

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Na noite de reinauguração da Valentina Club, não era nem preciso chegar perto da famosa fachada rosa, azul e branco para entender qual era o clima da boate, que desde o último sábado (5) está localizada na rua José Avelino, em frente à Praça Verde do Dragão do Mar. Duas filas extensas, com centenas de pessoas cada uma, tomavam conta de toda a rua, clara demonstração da expectativa que tomava conta do coração da Praia de Iracema.

Naquela madrugada, o movimento intenso lembrava o de décadas passadas, mas configurava uma novidade, já que poucas casas resistiram à série de crises que afeta o mercado de eventos da Cidade. A região, que há mais de 20 anos gira em torno das atividades do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, vem enfrentando problemas decorrentes da pandemia, do aumento da violência urbana e das recentes reformas na Praça Almirante Saldanha, bem como as mudanças próprias do mercado de shows e eventos

Boate foi reinaugurada em novo prédio na rua José Avelino, ao lado da Amsterdam

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Boate foi reinaugurada em novo prédio na rua José Avelino, ao lado da Amsterdam

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Davi Rocha

Por isso, desde a suspensão das atividades da Valentina Club, que realizou a última festa no prédio original em 31 de maio deste ano, donos, artistas e público compartilhavam um sentimento de tensão sobre o futuro da casa, uma das poucas boates voltadas para o público LGBTQIAP+ em atividade na capital cearense. 

A decisão de sair do casarão histórico na Senador Pompeu, no entanto, foi imprescindível para garantir a segurança do espaço e dos frequentadores, conta Leco Lima, um dos sócios da boate. No início deste ano, ao realizar uma manutenção periódica no espaço, ele e o sócio Alexandre Rodrigues descobriram que o casarão estava com problemas estruturais graves, que exigiriam a suspensão temporária das atividades e reformas que chegariam a quase meio milhão de reais.

“Era uma coisa muito além de uma pequena manutenção, e isso me assustava muito, porque tinha momentos em que a Valentina recebia acima de mil clientes”, conta Leco. Empresário a frente de casas noturnas da Capital há 25 anos, ele destaca que, desde a tragédia da Boate Kiss, ficou cada vez “mais temeroso” em relação a questões de segurança, e mesmo sem a condenação total do prédio, não quis esperar “uma tragédia acontecer”.

“Quando assumimos, estava tudo certo, mas nesses dois anos, [o prédio] foi desgastando, fazendo manutenção, e a coisa complicou por uma causa estrutural”, explica. “Aí eu disse: ‘não tem como, eu não continuo na casa. Se algo acontecer, Deus me livre, vai virar um memorial’”, lembra.

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Inspirada em casas noturnas como a lendária Divine (CE) e a Blue Space (SP), a Valentina Club foi inaugurada em 22 de outubro de 2022 e permaneceu no prédio original até maio deste ano. Aflito com a possibilidade de “matar” a casa no auge, Leco e Alexandre seguiram procurando casarões antigos que mantivessem a essência da casa e também fossem localizados na região central da Capital.

Encontraram a resposta na boate Level, administrada pelo emprésario Selmo Araújo, que já era sócio de Leco e Alexandre na boate Amsterdam – agora vizinha e conectada à Valentina – e no Bar da Gandaia. Fechada temporariamente por ter sido profundamente afetada pelas obras de requalificação do Dragão do Mar, a Level acabou dando lugar à “Valentina 2.0”.

Fachada da Valentina para a Praça Almirante Saldanha, ainda fechada por conta da reforma

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Fachada da Valentina para a Praça Almirante Saldanha, ainda fechada por conta da reforma

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Divulgação

“A única coisa que é antiga da Level é a fachada. Dentro tem quatro anos, é um prédio novo”, explica Leco. No casarão, foi possível manter as três pistas: Mundo, que recebe bandas de forró e DJs; Cabaré, espécie de pista inferninho voltada para o pop dos anos 90 e 2000; e Teatro, onde ocorrem os shows artísticos de drag queens.

Pista Mundo, a principal da casa

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Pista Mundo, a principal da casa

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Davi Rocha

Entrada da Pista Cabaré, onde o pop dos anos 90 e 2000 impera

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Entrada da Pista Cabaré, onde o pop dos anos 90 e 2000 impera

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Davi Rocha

As apresentações de artistas transformistas, aliás, são destaques na casa e consideradas essenciais pelos sócios. “Acreditava-se que esse nicho não tinha mais força, mas a gente veio para provar o contrário. O forte da Valentina realmente são os espetáculos, os shows artísticos, os shows das drags. A casa veio dessa força”, reforça Leco.

Forró na pista e expectativas para a nova fase

Cantora Suzy Navarro se apresenta na Pista Mundo da nova Valentina

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Cantora Suzy Navarro se apresenta na Pista Mundo da nova Valentina

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Davi Rocha

Outro aspecto que diferencia a Valentina de outras boates é a oferta de shows de forró em um espaço majoritariamente ocupado por pessoas LGBTQIAP+, algo que, por muitos anos, foi visto como um match improvável.

A ideia de Leco surgiu ainda em outra boate que ele administrou, a Donna Santa, que funcionou entre 2008 e 2017. “Na época, você falar de forró em boate gay era uma coisa que não existia. ‘Ah, não combina, jamais, boate gay é DJ, é bate estaca’. Só que eu comecei a ver que, dentro dos forrós, existia um público gay que era reprimido. Você não podia pegar na mão, você não podia se beijar, você não podia se abraçar”, lamenta.

[Na Donna Santa], eles se sentiam em casa. Não precisavam ser reprimidos em outro lugar, podiam estar com seus namorados, paquerar, pegar na mão em um lugar onde tocava o que eles queriam ouvir, dançar”, completa.

Suzy se apresentou para casa cheia e animada no último sábado (5)

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Suzy se apresentou para casa cheia e animada no último sábado (5)

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Davi Rocha

Na noite de inauguração, a cantora Suzy Navarro, ex-banda Líbanos, foi um dos nomes do line-up, junto a DJs de pop e tribal house. Cantando sucessos de forró das antigas, ela animou a casa, lotada de grupos de amigos, namorados e paqueras que dançavam, cantavam e elogiavam a artista a plenos pulmões.

Segundo a organização, o clube, que comporta 1.200 pessoas, recebeu 1.158 clientes. A Amsterdam, boate-irmã com espaço “picante”, 287 pessoas – número menor do que ocupava a rua José Avelino, já que algumas pessoas desistiram após horas de espera.

O intenso movimento na noite inaugural mostra que a tentativa de “revival do Centro” que deu certo na Senador Pompeu por mais de dois anos pode ajudar a reaquecer o entorno do Dragão do Mar, especialmente após o fim das obras de requalificação do equipamento cultural, previsto para o início deste segundo semestre. 

“A gente vai ter um aliado muito grande a partir de agosto, que é a própria reforma do Dragão. E você sabe que, quando tem novidade, todo mundo vem. Se não tivesse isso, a gente pensaria duas ou três vezes antes de levar para o Dragão”, pontua Leco Lima. 

Reinauguração da Valentina atraiu público e comerciantes para entorno do Dragão

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Reinauguração da Valentina atraiu público e comerciantes para entorno do Dragão

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Davi Rocha

O empresário aposta que a abertura da casa, junto a de outros clubes, como o Fuzuê, pode ajudar a retomar “a boemia do Dragão do Mar”. Além da Valentina, os sócios planejam abrir um novo Bar da Gandaia ainda neste semestre, em frente à Praça Almirante Saldanha.

“Acreditamos que a gente vai vir com o novo no geral: a nova Valentina, novo Dragão do Mar, o novo Bar da Gandaia, o novo Bixiga – que não vai ser Bixiga, mas vai ser outra coisa. Acho que a gente foi muito feliz nessa escolha”, conclui.

Casa se consolidou como palco de excelência drag

Arte transformista é um dos focos da casa. Na foto, a performer Dafny Williams

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Arte transformista é um dos focos da casa. Na foto, a performer Dafny Williams

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Davi Rocha

O intuito dos sócios de focar na arte transformista como atrativo principal da casa parte de um fato complexo: Fortaleza tem dezenas de artistas transformistas com diferentes talentos, das divas do bate-cabelo às comediantes, das cantoras às rainhas de concurso. Mas, especialmente desde o fechamento da Divine, são poucos os palcos para recebê-las, seja pela curadoria e pela estrutura das casas de show, seja pela falta de interesse em pagar cachês dignos.

Por isso, segundo Leco, a Valentina continuará recebendo pelo menos quatro shows de drag queens por mês – num fim de semana sim, noutro não, sempre com espetáculos musicais apresentados na noite de sábado e reapresentados na matinê de domingo. A estratégia visa contribuir para a cena e manter a casa e os shows atraentes para o público. “Faz no sábado, repete no domingo, no outro fim de semana ‘pula’, até pra não cansar”, explica.

Wanderleya D'Pantera encerrou a série de apresentações da noite

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Wanderleya D’Pantera encerrou a série de apresentações da noite

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Davi Rocha

Na noite de reabertura, cinco drag queens ocuparam o palco da Pista Mundo, a principal da casa: Deydianne Piaf, como mestre de cerimônias; as performers Alpha Killer, Nefertiti Hortz e Dafny Williams; e Wanderleya D’Pantera, que encerrou o show com uma apresentação de tirar o fôlego, que ocupou toda a pista e agitou o público.

Alpha Killer começou a se apresentar como drag queen no palco da Valentina

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Alpha Killer começou a se apresentar como drag queen no palco da Valentina

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Davi Rocha

A produtora e performer Alpha Killer, 24, foi responsável por abrir o show e conta que o momento foi especial, já que foi no palco da Valentina que performou pela primeira vez como drag queen, no início de 2023. “Na época, fiquei muito feliz com aquilo, porque eu pude mostrar minha arte no palco, com estrutura, telão. Isso, para a gente que é artista, é muito grandioso”, destaca a artista, que também é idealizadora do Drag Dinner, ex-Drag Brunch Ceará, evento recente que tem ampliado as possibilidades da cena transformista da Cidade.

Segundo Killer, quando a casa afirmou que ia fechar, diversos artistas da cena ficaram temerosos, com “muitas perguntas e muitas inseguranças”. “Cada dia que passa, a nossa cena está tendo menos espaço, e ter a Valentina aberta dentro desse mundo, em que estão se fechando milhares de portas, é muito importante”, pontua. “Fico muito feliz que a casa não deixou de apostar na nossa arte nessa nova etapa”, completa.

Dafny Williams é uma das artistas de destaque do bate-cabelo cearense

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Dafny Williams é uma das artistas de destaque do bate-cabelo cearense

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Davi Rocha

Assim como Alpha Killer, a carreira da performer Dafny Williams, 26, tem relação direta com a Valentina. Drag queen há 13 anos, a piauiense veio morar na Capital há seis, mas começou a ser verdadeiramente conhecida na cena local após começar a performar seus impressionantes números de bate-cabelo na boate. 

“É um lugar importante, principalmente porque abre espaço para novos artistas, com os concursos”, afirma. “E as drags antigas também continuam fazendo shows, para não serem esquecidas”, completa.

Nefertiti Hortz, referência na cena drag da Capital desde os anos 2000

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Nefertiti Hortz, referência na cena drag da Capital desde os anos 2000

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Davi Rocha

Artistas de carreira longeva, como a performer Nefertiti Hortz – que começou a atuar como drag queen em 2000, na Divine –, também vêem na Valentina um palco importante para manter a arte drag cearense viva. 

“A tentativa da Valentina é resgatar essa vida que a gente tinha no Centro, que era tão vigorosa, tão maravilhosa, e que a Divine proporcionou para muita gente. Mas ela traz uma outra coisa, porque tem a modernidade, são outros tempos. É um outro espírito, mas tão bom quanto a Divine”, aponta a artista, que coloca a casa como referência no Norte-Nordeste.

Além de ressaltar a importância dos palcos da Valentina em si, as performers ouvidas pela reportagem concordam em outro ponto: a permanência da boate, agora no entorno do Dragão do Mar, pode contribuir com uma nova fase da vida noturna de Fortaleza, que há tempos pede por renovação.

“Espero muito que a Valentina faça esse papel aqui, porque realmente o Dragão estava muito complicado. Sou uma gata que vivi muito aqui e, nos dois últimos anos, deixei de consumir o Dragão do Mar, tanto pela insegurança, quanto por outros motivos”, comenta Alpha Killer.

“Com essa reforma concluída, espero que abra um leque gigante de novos espaços, porque eu acho que muita gente, tanto da comunidade LGBT como outras pessoas que buscam entretenimento na nossa cidade, tem o Dragão do Mar como referência”, conclui.

Legado da Divine, diversidade musical e acolhimento atraem público

Boate funcionava na rua General Sampaio, no Centro de Fortaleza

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Boate Divine funcionava na rua General Sampaio, no Centro de Fortaleza

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Gustavo Pellizzon/Arquivo Diário do Nordeste

Além de garantir um palco necessário às performers da Cidade, a Valentina tem se tornado um espaço importante para o lazer de festeiros de diversas idades e perfis. É o caso do auxiliar de serviços gerais Sidnei Timóteo, 36, que encontrou na boate uma oportunidade de reviver o tempo de ouro da Divine, local que frequentou por anos, da adolescência ao início da vida adulta.

Ele conta que, nos mais de dois anos em que a Valentina esteve sediada no Centro, ia pelo menos duas vezes por mês às festas da casa com amigos, por sentir que o espaço replicava a sensação de liberdade e alegria da Divine. “É um espaço que a gente se sente livre, a gente se sente amado”, afirma.

Na noite da reabertura da Valentina, Sidnei começou a noite com uma decepção: chegou antes da meia-noite e, por volta de 1h da madrugada, ainda aguardava para poder entrar na casa, mesmo tendo comprado ingresso antecipado. “Mas entendo que todo mundo se empolgou, é assim mesmo”, brinca.

O auxiliar de serviços gerais destaca que, no novo endereço, a boate tem a chance de trazer de volta uma rotina “que é necessária” para a cidade, que já teve clubes com atividade bem mais frequente. 

Sidnei Timóteo curtiu a era de ouro da Divine e, agora, é cliente fiel da Valentina

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Sidnei Timóteo curtiu a era de ouro da Divine e, agora, é cliente fiel da Valentina

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Davi Rocha

“Na Divine, as festas aconteciam de quarta a domingo. Eu fugia de casa para ir pro meio do mundo, porque minha mãe não gostava muito”, ri. A expectativa dele, agora, é que Valentina e Dragão do Mar, juntos, ajudem a noite fortalezense a renascer. “Vamos viver e aproveitar esse momento”, aconselha Sidnei.

Além da saudade das boates dos anos 2000, outros fatores movem o público que ocupam a região central da Cidade para curtir a noite na Valentina. O casal Gabriel Ramalho, 29, e Eduardo Marreira, 28, por exemplo, conta que a diversidade de ritmos musicais em uma só festa é um dos maiores atrativos da casa, assim como a nova estrutura.

“Eu gostava de ir no prédio antigo porque as festas tinham muito espaço, eram três espaços diferentes, tocando estilos diferentes. Então, você podia transitar entre todos”, pontua Eduardo. 

Já Gabriel destaca a expectativa em relação ao novo espaço. “As festas eram muito boas, mas a estrutura, como era um casarão antigo, não era muito interessante. As escadas eram muito mal feitas e, como lotava muito, ficava um pouco apertado, por isso a gente não ia tanto”, explica. O arquiteto, que costumava frequentar a Level, afirma estar mais animado em relação à nova sede.

“Fortaleza estava bem precária em questão de festas, principalmente aqui no Dragão do Mar. Ela vindo pra cá, como a gente consegue ver, está reacendendo o Dragão, que ainda está sendo reformado também. Então, acho que daqui pra frente isso tende a melhorar”, completa.

Janiel (de camisa branca) e Luna costumam frequentar a boate com amigos pelo mix de ritmos

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Janiel (de camisa branca) e Luna costumam frequentar a boate com amigos pelo mix de ritmos

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Davi Rocha

A cabelereira Luna Ellen, 25, também destaca a ecleticidade das festas da Valentina como um ponto positivo que deve continuar a movimentar a casa em novo endereço. “São três a quatro ritmos de música. Eu gosto por conta disso, é forró, funk, tribal”, enumera, e conta estar feliz pela casa nova seguir com as cores originais, que remetem à bandeira trans.

O cabelereiro Janiel Mota, 20, amigo de Luna, ressalta que, além da música variada – “pra curtir a madrugada toda, sem enjoar” –, a Valentina representa um espaço de acolhimento à população LGBTQIAP+ na Capital. “É uma casa onde todas as pessoas que querem vir são muito bem acolhidas”, celebra.

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