‘Cegonhas’ cearenses: artistas fazem sucesso com produção de bebês reborn e vídeos virais no TikTok – Verso

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A cearense Fernanda Oinegue, 20, tinha apenas sete anos quando descobriu o mundo hiper-realista dos bebês reborn. No dia em questão, ela navegava por vídeos infantis no YouTube quando se deparou com um boneco que parecia uma criança de verdade, mas era feito de vinil – um dos materiais mais utilizados na criação dos reborn. Encantada, pediu um boneco como aquele para os pais, mas só conseguiria o seu primeiro bebê anos depois, quando uma amiga da família resolveu doar o brinquedo.

No início da adolescência, a menina achou aquele universo lúdico tão especial que, algum tempo depois, revendeu a boneca para comprar uma nova e ter contato com outros estilos de bebês. Assim fez por anos, até decidir comprar kits artesanais para fabricar os próprios bonecos. Hoje, quatro anos após começar a trabalhar no segmento, ela é dona da “maternidade” Meu Reborn e uma das cegonhas – nome dado às artesãs que fazem bonecos de bebês realistas – mais conhecidas do TikTok, onde acumula quase 400 mil seguidores.

Artista divide rotina de estudos com a pintura de bebês reborn

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Artista divide rotina de estudos com a pintura de bebês reborn

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Davi Rocha

Em meio às polêmicas que têm envolvido os bonecos nas últimas semanas – que vão de personalidades “adotando” bebês reborn a uma série de projetos de lei, além de milhares de vídeos virais –, Fernanda conta que o mercado brasileiro está aquecido. Por mês, a jovem artesã faz de cinco a seis bonecos em um processo 100% artesanal, que envolve a pintura e o implante dos cabelos, feito fio a fio com pelos de ovelha, lhama ou alpaca encomendados na internet.

Feitos de vinil ou silicone sólido – sendo este último uma espécie de bebê reborn premium, ainda mais realista e, por isso, mais caro –, os bonecos feitos por Fernanda custam de R$ 2.590 a R$ 7 mil e podem ou não incluir itens extras, como “enxovais” e acessórios. Cada boneco pode levar até dois meses para ficar pronto, a depender da personalização requisitada pelo cliente.

fotos de Bebês reborn em banco, que podem ser feitos de silicone sólido (à esquerda) e vinil (à direita), material mais utilizado pelas artesãs

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Bebês reborn podem ser feitos de silicone sólido (à esquerda) e vinil (à direita), material mais utilizado pelas artesãs

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Davi Rocha

Apesar de terem viralizado recentemente, os bebês reborn não são novidade. Criados nos EUA na década de 90, eles já foram, inclusive, protagonistas de obras de ficção famosas, como a série “Servant” e o livro “Uma Família Feliz”, do escritor Raphael Montes, obra adaptada para o cinema em 2024.

Segundo ela, todos os bonecos feitos na Meu Reborn são oriundos de kits originais, esculpidos por outras artesãs – e, diferentemente das réplicas, são mais duráveis, e portanto mais caros. Nos últimos quatro anos, a artista acredita ter feito pelo menos 100 bebês reborn.

imagem do processo de criação dos bebê reborn, com Implante de cabelo fio a fio e pintura de texturas e manchinhas

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Implante de cabelo fio a fio e pintura de texturas e manchinhas fazem parte do processo

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Davi Rocha

O que torna os bebês reborn tão realistas, segundo a artista, é a pintura. Com ela, pele e olhos mudam de cor, manchinhas e texturas são adicionadas, bem como os traços que constroem as expressões infantis. No processo artístico, também podem ser adicionados detalhes como marca de vacinas, brotoejas e até ‘bolinhas de leite’.

O alto custo, destaca, tem a ver não só com o material, mas com a própria mão de obra das artistas. Apesar de nichado, o público interessado tem crescido e é dividido entre crianças e colecionadoras adultas, quase sempre mulheres – que têm sido o principal alvo de piadas e ataques na internet nos últimos dias, segundo Fernanda. 

“Eu não percebo mudança [nas vendas]. Acho que realmente o hate vai mais para as colecionadoras adultas, e não para as artistas, até porque muitas pessoas admiram as artistas”, explica. “Mas é só uma arte. Assim como as pessoas gostam de colecionar carrinhos, pedras, quadros, há pessoas que gostam de colecionar bebês reborn”, destaca a artista, que afirma que a maioria das colecionadoras não vê os bonecos como “bebês de verdade”, mas sim como um hobby.

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Role play: brincadeira ou estratégia de marketing?

Assim como os perfis de colecionadoras, os vídeos publicados pela artista no TikTok incluem cenas da “rotina” com os bebês reborn, um deles até com momentos do bebê “no hospital” – material feito quando a própria Fernanda estava internada e decidiu aproveitar o tempo livre para gravar. Tudo, no entanto, não passa de brincadeira, estratégia de marketing ou um pouco dos dois.

Mesmo com a pouca idade, Fernanda tem encarado a polêmica com leveza e se diverte até com alguns dos comentários negativos. “Na época [do vídeo no hospital], falaram ‘Ah, eu não sei se você sabe, mas é de plástico’. ‘Ah, será que já vem endemoniado?’. As pessoas acharam que era o hospital psiquiátrico, mas não era”, brinca.

“Mas é bem legal porque, ao mesmo tempo que tem o hate – que a gente ri muito, eu pelo menos acho muito engraçado as pessoas caindo, acreditando – tem também muitas pessoas que acharam o conteúdo muito legal. Algo tipo ‘ah, ela está aproveitando que ela está numa situação ruim e está gravando vídeos legais, divertidos’”, completa.

Para Fernanda, a maioria dos vídeos que simulam uma rotina real dos bebês tem o mesmo intuito – o chamado role play, uma espécie de atuação. “O que mais fez essa polêmica acontecer foi as pessoas acreditarem, mas eu não conheço ninguém que de fato cuide como um bebê de verdade. As pessoas acham que quem tem bebês reborn e cuida como bebê de verdade, sendo que a maioria fica no armário o dia inteiro”, completa.

Bebês reborn feitos no Ceará podem custar mais de R$ 10 mil

foto de Bebês realistas da Império Reborns, que podem custam a partir de R$ 1.200

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Bonecos realistas da Império Reborns custam a partir de R$ 1.200

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Divulgação

Assim como Fernanda, a cegonha Alanis Padilha, 25, começou a se interessar pelo universo reborn ainda na infância, quando sonhava em brincar com as bonecas. Ganhou a primeira bebê em 2013 e, quatro anos depois, quando cursava o 3º ano do Ensino Médio, começou a aprender a transformar kits em bonecos realistas, tendo como mentora uma cegonha experiente.

Por alguns anos, conciliou o cursinho para o vestibular de medicina e a feitura dos brinquedos. Anos depois, já como dona da marca Império Reborns, percebeu que já tinha encontrado seu ofício e passou a se dedicar unicamente aos bebês reborn.

“Com o passar do tempo, se transformou na minha profissão, porque ganhou muito espaço na minha vida”, conta. A tomada de decisão teve como influência o crescimento do mercado: os bonecos vendidos por Alanis custam, hoje em dia, entre R$ 1.200 e R$ 12 mil, mas o valor pode ser ainda mais alto, a depender das necessidades da cliente.

fotos de bebês gêmemos da Império Reborns

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Bebês da Império Reborns

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Divulgação

O dinheiro, no entanto, não foi o fator definitivo. “Apesar do retorno que elas dão, o trabalho é muito grande. E você tem que lidar com todo o tipo de cliente, com pessoas. Realmente, é muito complicado, é para quem realmente gosta mesmo”, completa.

Por mês, Alanis Padilha faz de cinco a dez bonecas, mas em datas comemorativas, o movimento aumenta. Próximo a celebrações como Dia das Crianças e Natal, Alanis chega a fazer até 25 bebês reborn em um único mês. Os produtos são enviados para todo o País. A cada seis bonecas vendidas na Império Reborn, duas ou três são para a capital cearense, conta Alanis, que têm clientes fiéis em Fortaleza. 

Atualmente, Alanis toca a empresa sozinha e se divide entre vendas para o público infantil e as colecionadoras – tarefas que exigem diferentes habilidades, segundo a artista. “É bem diferente o trabalho de uma boneca para uma criança e de uma boneca para uma colecionadora. Então, a partir do momento que você começa a evoluir mais na arte, é normal que o seu público vá migrando de criança para colecionadora”, detalha. “As colecionadoras são bem mais exigentes”.

Apesar da paixão pelo trabalho e da agenda cheia, Alanis conta que as polêmicas envolvendo os bebês reborn têm impactado no movimento dos últimos meses. “Era algo que vinha crescendo bastante, mas eu senti, sendo muito sincera, que quando estourou essa situação toda, deu uma caidinha, comparando com meses anteriores”, lamenta.

Assim como Fernanda, Alanis  acredita que muitos dos vídeos que viralizaram foram feitos propositalmente para engajar, seja com intuito comercial ou apenas de marketing pessoal. “É para gravar e para gerar conteúdo. Mesmo que sejam apenas colecionadoras, elas estão tendo retorno com os vídeos. Então, acaba que se torna algo mesmo para engajar”.

“Eu não acho que são pessoas que vêm como um bebê de verdade. Elas têm noção de que é uma boneca, mas gostam realmente de levar para passear, para as outras pessoas verem, tirar foto, gravar vídeo”


Alanis Padilha

Cegonha Reborn

Alanis ainda acredita que, para cegonhas e colecionadoras, a “viralização” pode ser mais benéfica do que trazer problemas. Assim como em qualquer outro segmento, as redes são essenciais para furar a bolha e difundir perfis profissionais, por exemplo, além de reunir pessoas com interesses em comum.

@imperioreborns Primeiro encontrinho reborn em Fortaleza 🥰#bebe #bonecareborn #bebes #bebereborn #arte #encontrinho #boneca #bbreborn ♬ ACORDA PEDRINHO – Jovem Dionisio

“A maior parte dos meus clientes vem do TikTok. Semana passada eu enviei uma boneca para a Suíça, porque extrapola, o TikTok leva para fora do Brasil”, celebra. “Já sofri hate lá, mas nada que fosse absurdo, como outras pessoas sofrem. Acredito também que deixo muito clara a intenção do meu conteúdo, que é para divulgar o meu trabalho”, completa.

Uso terapêutico pode ser indicado, mas é preciso cuidado

Uso terapêutico de bebês reborn pode ser indicado. Na foto, um dos bonecos da marca Meu Reborn

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Uso terapêutico de bebês reborn pode ser indicado. Na foto, um dos bonecos da Meu Reborn

Foto:
Davi Rocha

Apesar de boa parte das encomendas de bebês reborn ser destinada a brincadeiras ou coleções, há ainda outro tipo comum de clientes: os que procuram os bonecos para curar demandas emocionais ou de saúde. “Tem gente que perdeu o filho e sente como uma forma de conforto. Tem gente que não consegue ter filho”, relata Fernanda. “Uma vez, uma moça adulta comprou para a mãe dela, que tinha Alzheimer”, lembra. “Isso me marcou, porque ela cuidava como um bebê de verdade”, completa.

Alanis também já recebeu pedidos inusitados: mães que perderam seus filhos na primeira infância e que queriam reproduzir os traços das crianças nos bonecos, para ter uma lembrança. Num dos casos, a criança tinha menos de um mês de idade. “Eu não aceitei. Não aceito esse tipo de encomenda, porque eu acho que pode acabar gerando uma sensação meio desconfortável para a própria mãe, com o passar do tempo”, conta a artista.

Como muitas questões, a eficácia do uso de bebês reborn para aliviar uma dor ou ausência não possui consenso. Há profissionais que acreditam que eles podem ser utilizados como uma ferramenta de cura; outros, que rejeitam a ideia e acreditam que, nesse contexto, os brinquedos podem piorar quadros de saúde.

Para a psicanalista Elaine de Tomy, vice-presidente do Instituto Revoar, os bebês reborn podem ocupar um lugar lúdico e saudável na rotina de adultos. “Quando nós ficamos adultos, a gente ainda tem uma criança dentro de nós, que não queremos esquecer. Tem uma ligação com quem eu fui, com quem eu ainda tenho dentro de mim, até mesmo por questões emocionais – tanto coisas que me faltaram, como aquilo que eu quero preservar”, comenta.

 A preocupação deve existir, no entanto, quando o objetivo não é um momento lúdico ou hobby, e sim a fuga da realidade. “Esse refúgio emocional é preocupante”, explica. “O que é que a pessoa está guardando dentro de si, tentando suprir com essa demanda emocional? Isso pode levar as pessoas a sentirem desorganização, ansiedade, apatia, vazio, irritabilidade constante”, pontua.

Em casos de luto, os bonecos podem ter uso terapêutico, mas é preciso uma avaliação profissional para entender até que ponto eles podem ajudar. “O adoecimento psíquico depende da intensidade, frequência do sofrimento e o quanto aquilo atrapalha a minha vida, o quanto eu uso aquilo como um refúgio da minha própria realidade”, destaca. “Se estiver mascarando, tirando a pessoa da realidade, evitando que ela entre em contato com aquilo que ela precisa entrar, aí já é prejudicial”.

Os bonecos também podem ser benéficos para pessoas com mobilidade reduzida, idosos ou que tenham pouco contato com pessoas. “Vai cumprir algo terapêutico e também vai cumprir algo da infância, porque muitas pessoas passaram por uma infância de pobreza, que não tiveram a oportunidade de ter as bonecas que desejavam, e vai ter um vazio que vai ser preenchido naquele momento”, pontua.

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