Secas, migrações e campos de concentração: como Fortaleza cresceu entre épocas de estiagem e chuvas – Ceará

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Do solo seco do interior brotou uma capital. Tão grande quanto desigual. A relação entre a falta de chuvas no Ceará e o surgimento de periferias e bairros nobres de Fortaleza pode não parecer óbvia, mas é concreta: mora nos documentos históricos e na memória de quem estudou o crescimento e a formação da cidade.

A migração do povo sertanejo – recebido com discriminação e relegado a abarracamentos e campos de concentração distantes da elite – configurou as primeiras favelas da capital que é, em 2025, a quarta maior do Brasil. Essas regiões, ainda hoje, carregam desigualdades históricas no DNA.

A falta d’água, então, transformou a cidade através de diversas décadas. Uma delas, aliás, foi “um ponto de inflexão”, como define uma das especialistas ouvidas aqui: a seca de 1877 mudou tudo. Moldou tudo.

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Esta é a terceira e última reportagem do especial “Fortaleza, quantas histórias”, publicada ao longo do mês de abril, para contar como a criação de bairros, as condições climáticas e o crescimento da população recontam a memória da cidade de 299 anos.

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“Boom” populacional

A saída de pessoas do interior do Ceará, sobretudo do Sertão Central, rumo a Fortaleza foi potencializada com a chegada dos trens, já instalados em 1872. Principais transportes de mercadorias, os vagões passaram, diante da fome e da sede, a carregar gente. 

O ápice da migração ocorreu durante a “Grande Seca do Nordeste”, batismo da História ao período entre 1877 e 1879.

À época, o povo era “atrozmente flagellado pela clamorosa sêcca que o aflige, roubando-lhe as energias vitaes”, como eternizam os ofícios e cartas escritos pelas autoridades da Fortaleza-província, no Brasil Império. Os documentos estão guardados no Arquivo Público do Ceará. 

A cidade provinciana, que tinha cerca de 25 mil habitantes e ainda lutava para se provar relevante, teve ali uma explosão populacional: cerca de 100 mil migrantes cruzaram as estradas e se espalharam pelas ruas da “tábua de salvação” que era Fortaleza, segundo registros históricos. 

Legenda:

Casas de palha no litoral de Fortaleza; retirantes da seca de 1915; vista aérea da capital em 1934

Foto:

Arquivo Nirez/Biblioteca Nacional

Escritos do médico Rodolfo Teófilo apontam, por outro lado, que “em dezembro de 1878, tinha Fortaleza 160 mil almas, sendo destas 120 mil de retirantes”. A citação consta no livro “Isolamento e poder: Fortaleza e os campos de concentração na Seca 1932”, da historiadora Kênia Rios.

Com a seca, vão vir pra cidade de Fortaleza quatro vezes mais pessoas do que o número de moradores da cidade: 100 mil migrantes de todo o Ceará chegaram. Fortaleza é o último lugar de socorro, a tábua de salvação.


Karla Torquato

Doutora em História e professora da Uece em Quixadá

Karla Torquato, doutora em História e professora do campus da Universidade Estadual do Ceará (Uece) em Quixadá, recobra que, naquela época, as vias que conhecemos hoje como “avenidas Duque de Caxias, Imperador e Dom Manuel formavam o perímetro urbano”, ou seja, o que de fato era considerado pela elite como “a cidade”.

A chegada massiva dos retirantes a esses locais, então, “causou um estranhamento, não houve acolhimento”, como relembra José Borzacchiello da Silva, professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Karla acrescenta que isso fortaleceu uma característica que já se arquitetava no desenho de Fortaleza: “o crescimento da cidade se dava com a separação entre centro e subúrbios”. Um relatório do então presidente da província, José Júlio, já destacava a “limpeza da capital”, sob remoção dos retirantes, como uma das primeiras medidas de governo.

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Campos de concentração

À elite, então, interessava apagar a pobreza. “No primeiro momento, não se investe em infraestrutura pros retirantes, porque a ideia era que não ficariam lá. Foram construídos abrigos provisórios, de palha mesmo, e a comida distribuída onde estivessem”, pontua a historiadora Karla Torquato.

Ela recobra que, à época, o recomeço das aulas no segundo semestre do ano foi adiado, “porque a cidade estava tomada por retirantes, e os prédios públicos abrigavam essas pessoas”. Havia, inclusive, determinação de que elas fossem alocadas “a sotavento”, para que a brisa “não levasse doenças” à área nobre da cidade.

Diante do caos, acentuado pela chegada da varíola, o presidente da província resolve criar os “abarracamentos” – posteriormente substituídos por campos de concentração. Espaços onde os retirantes deveriam permanecer confinados, saindo apenas para trabalhar em troca de comida, sem circular pela cidade. 

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campos de concentração existiram em Fortaleza, conforme dados históricos: o do Matadouro, atual bairro Farias Brito; e o do Urubu, atual Pirambu.

Legenda:

Campo de concentração do Urubu, no Pirambu; retirantes da seca de 1915; mapa de Fortaleza em 1932

Foto:

Dnocs/Biblioteca Nacional/ Reprodução do livro “Isolamento e Poder”

“A formação dos abarracamentos coincide com a área do Grande Pirambu, segregada do resto da cidade pela linha do trem. Houve crescimento da população, mas de baixíssimo poder aquisitivo, dependente de políticas assistenciais”, registra o geógrafo José Borzacchiello. 

À época, foi criada a “Comissão de Soccorros Públicos”, primeiro órgão de assistência social que Fortaleza conheceu, segundo documentam os ofícios da Província às autoridades do Império.

Nos primórdios da cidade, o litoral não era valorizado, como analisa Borzacchiello. Era nas praias onde os “flagelados” desembarcavam e faziam morada. Daí surge a ocupação da orla pelos campos de concentração e pela população pobre, originando, décadas depois, comunidades como Serviluz e Pirambu.

A professora da Uece, Karla Torquato, delimita que os abarracamentos, “ao mesmo tempo em que recebem os retirantes, os excluem da cidade”, já que foram construídos em regiões “para onde eram enviadas as atividades insalubres, nos subúrbios, a sotavento”.

“Pra receber comida tinha que se alistar a um abarracamento e trabalhar: carregar pedras pro porto de Fortaleza, calçar as ruas da cidade. Os retirantes, além de exauridos, doentes e com fome, precisavam trabalhar pra receber os socorros públicos”, pontua Karla.

Igreja do Sagrado Coração de Jesus em 1886, em Fortaleza

Legenda:
Igreja do Sagrado Coração de Jesus em 1886, uma das obras feitas com a mão de obra de retirantes em troca de alimento

Foto:
Arquivo Nirez

Prédios como Santa Casa de Misericórdia, no Centro; o Hospital Psiquiátrico São Vicente de Paulo, na Parangaba; e a Igreja de Nossa Senhora das Dores, no Otávio Bonfim, foram construídos pelas mãos dos retirantes da seca, como registram documentos no Arquivo Público do Ceará.

Além da de 1877, estiagens marcantes e severas, como as de 1888, 1915 e 1932, vieram. E intensificaram o processo migratório do campo para Fortaleza, como descreve José Borzacchiello. “E a partir dos anos 1930, surgem as primeiras favelas.”

Fica o rico, sai o pobre

Nas intercaladas voltas da chuva, parte dos retirantes retornou aos locais de origem. Mas a maioria não. “A cidade de Fortaleza após a seca é outra, e o planejamento urbano que separava cidade e subúrbio é colocado em prática. Até hoje percebemos o cinturão de pobreza que Fortaleza tem”, compara Karla Torquato.

A “cidade de costas para o mar”, então, consolidou o Centro e a Aldeota como berço das classes alta e média. Aos mais pobres, sobraram as áreas de risco, “sempre associadas a quem não teve acesso a políticas habitacionais”, como pontua o geógrafo e professor da UFC.

A falta de saneamento, a precariedade ambiental e de condições insalubres de vida, então, atravessam a cidade desde os abarracamentos do século XIX até as atuais áreas de risco: “ocupadas porque são desprezadas, únicas áreas possíveis para essas pessoas, ocupação que revela um desleixo das autoridades”, sentencia Borzacchiello.

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Área de risco no Conjunto Palmeiras; vista do Morro Santa Terezinha, no Mucuripe; bairro Pirambu

Foto:

Natinho Rodrigues/Alex Costa/Kid Júnior

A convivência “incômoda” entre pobres e ricos, que vem dos séculos passados até hoje, foi o que fez surgir na capital cearense, ao longo dos anos, novas formas de morar e de circular pela cidade.

“Esse incômodo vai desaparecer com o advento de uma nova forma de morar: os condomínios fechados. E os shoppings centers, que rompem com o conceito tradicional de periferia. A periferia agora só existe no sentido geométrico, mas não social. Porque há pobres no Centro e em todos os lugares”, frisa.

Apesar das transformações urbanísticas e sociais ao longo das décadas, alguns marcadores persistem. Algumas camadas continuam na base, outras no topo.

A historiadora Karla Torquato observa, por exemplo, que “o Centro continua sendo Centro, mas o subúrbio, que antes era Jacarecanga e Benfica, hoje é Bom Jardim e Siqueira”. Segundo ela, “conforme a cidade vai crescendo, o subúrbio vai sendo empurrado pra mais distante. A lógica é sempre a mesma”.

O aumento dos aluguéis na região central vai empurrando a pobreza para longe. A especulação imobiliária e uma série de elementos existem para tirar os pobres urbanos do acesso a essa região mais central, que é onde eles encontram trabalho.


Karla Torquato

Doutora em História e professora da Uece em Quixadá

E assim como a lógica geográfica, a classista também resiste. “Os habitantes do cinturão periférico continuam sendo migrantes, eles ou os pais não nasceram em Fortaleza. Vieram do interior não mais pela seca, mas por falta de investimento no interior. Vêm em busca de melhor qualidade de vida, de acesso – o que, assim como no século XIX, permanece na capital.”

A Fortaleza do futuro

Praça do Ferreira em Fortaleza no ano de 2020

Legenda:
Mudanças climáticas continuarão moldando a cidade, principalmente em infraestrutura e saúde

Foto:
Nilton Alves

Se nos anos 1870 e 1930 era a seca que movia milhares de cearenses de um ponto a outro do Estado, no futuro, possivelmente, serão as chuvas. Será o mar que avança. Será o calor insuportável. Entre um século e outro, nesse ponto, nada mudou: as mudanças climáticas seguirão formando e transformando Fortaleza.

Para Francisco Vasconcelos Júnior, pesquisador da Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme), quatro pontos são centrais e exigem atenção: 

  • a elevação do nível do mar, devido à erosão costeira; 
  • o aumento da temperatura, que já subiu 1,6°C na Grande Fortaleza, nos últimos 60 anos;
  • as doenças sensíveis ao clima, como arboviroses;
  • e os eventos extremos de seca e de chuva.

“Eventos extremos mais intensos e frequentes são algo que pode se acentuar no futuro. Em Fortaleza, tivemos aumento das precipitações, e isso pode ter impacto principalmente na infraestrutura urbana, nos sistemas de drenagem, em localidades com construções mais vulneráveis, e é necessária uma adaptação e investimentos mais específicos”, situa Júnior.

O pesquisador avalia que, diferentemente dos séculos passados, a migração massiva do interior à capital não deve ser expressiva em casos calamitosos. Problemas causados pela seca de 2012 a 2017, por exemplo, foram mitigados com medidas de contingência. A tecnologia e o avanço das políticas públicas, assim, fazem a preocupação da “cidade grande” ser outra.

“Na perspectiva de mudança do clima entre 30 e 40 anos, os desafios são outros. Claro que temos que ter um sistema hídrico robusto, adaptável à pressão associada ao clima, a déficit hídrico por vários anos. Mas os grandes impactos para Fortaleza serão de infraestrutura urbana: edificações, redes de energia, saneamento e saúde pública. O futuro requer planejamento constante”, pondera.

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