Artigo: O Homem Que Não Queria Nascer

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A pior das calúnias é a que visa nossa preguiça, a que contesta sua autenticidade.” (Emile Michel Cioran)

O mundo sempre fez cara feia para seu Valmi. Na hora agoniada do seu nascimento, a parteira, novinha e inexperiente, com trapinhos alvos e quentes à mão, quase esmoreceu no momento do complicado parto. Valmi estava entalado e, como um tatupeba, foi sugigado e puxado com força, mas com jeitinho. Ele, entretanto, lutava com a bravura de um pracinha sob as bombas e o frio em Monte Castelo. Não queria abandonar as mornas entranhas para enfrentar as agruras que o aguardavam, ao contrário dos pracinhas, sempre ansiosos para estarem longe do inferno da guerra. Sua intuição lhe alertava: o tal mundo lá fora era como a panela de um caçador faminto, com água borbulhando para o aferventar, cozinhá-lo e saboreá-lo com pimenta malagueta, farinha de puba e “Arreda gato, vai caçá rato, qui o meu peba eu num ti dô”, diria resmungando, o caçador com os beiços e os dedos lambuzados de gordura e farinha.

Valmi não era um tatupeba, e, ademais, seu prazo de vida intrauterina havia chegado ao fim. Tinha que chispar. Retroceder? Não podia, entretanto não queria seguir adiante. No meio do caminho não tinha uma pedra, quisesse ou não o grande poeta Drumond, porém, lá fora, uma vida madrasta com a chibata na mão estava a esperá-lo, e queria açoitá-lo, seja lá em que esquina fosse. O esforço quase autoimplosivo da parturiente ao soprar uma boca de cabaça para expelir Valmi, adicionando-se a isso a coragem da menina parteira, caçando o melhor jeito de puxar sem maltratar a mãe e o pimpolho, deram resultado bom.
Ainda bebê, Valmi enfrentou uma tosse braba e um puxado que assobiava em seu frágil peito a canção da morte, todavia ele se livrou: a tosse e o puxado foram enxotados com sábias mezinhas e dele se despediram com um “Até nunca mais, Valmi”.

Já meninote , foi maltratado por um sarampo, uma lastrina e uma cachumba que, por pouco, não desceu devido a estripulias.
Rapazote, sofreu uma anemia profunda, e as lombrigas famintas, que sua mãe combatia com purgante de mamona, quase o mataram. Na cabeça sempre raspada, certo aprendiz de barbeiro não deixava um chumaço sequer. Lá, piolho não ficaria acoitado. Era no grupo escolar Santa Luzia que ele se infestava. A despeito das mazelas ficou grandalhão, porém, zambeta, mas só Deus sabe o porquê. Qualquer chouto o deixava afrontado, quase botando os bofes pra fora, pois, afinal, quem ficava esbaforido era menino bem-nascido, em família que tinha renda e sabia falar bonito.

Portanto, arrastou-se debilitado por toda a meninice e, mesmo depois de ficar rapagão, continuou poltrão. Tanto é verdade que, na roça, já aos 13, com pelos grossos despontando no sovaco e nas intimidades, além dos que brotavam nas ventas e entre os beiços e o nariz, mesmo “homão” assim, era o derradeiro a terminar o eito, encharcado por um suor que lhe dava de saldo uma sovaqueira malvencida pelo sumo de limão e que recendia ao seu redor, com quase todos, maldisfarçadamente, a tapar o nariz, exceto os que a tinham, por serem acostumados. Sua mansidão de boi carreiro dava a pista: tinha uma alma boa se aquilo não fosse sonsidão de treiteiro, mas não, era não. Ele não era sonso. Era atencioso, de rudeza benigna e só agravava o que comia.

Na ordenha, somente acabava o desleite da primeira vaca quando os irmãos e o pai estavam do meio para o fim da ordenha na segunda.

Aos 18, fez-se homem dos ossos maciços, as bochechas ganharam um leve rosado, e as espinhas, que o acompanhavam desde os 15, começaram a ralear-se. Não se alterou, todavia, o seu olhar desfocado, de vaca leiteira, ruminando macaúbas.

A sacoleira, amiga de sua mãe, tentou fazer dele gente, embora gente ele fosse, ou melhor, queria torná-lo apresentável, se possível, chique, mesmo que um chique brega, que para seus olhos nem brega seria, afinal, breguice e refinamento são conceitos em conformidade com a cabeça ou a bolha em que cada um vive. Ninguém se vê brega, salvo por opção. Bregas são os outros, como diria J.P. Sartre, se nascido e criado em Miracema do Tocantins-TO.

Incutida em seu propósito, a sacoleira, vendia-lhe desodorante ordinário, boné de marca falsificada, cuecas apertadas, tênis de solado branco, camisetas com figuras estranhas e calças frouxas, “da hora”, mostradas em novelas. Revezando com a irmã do próprio e com o rádio ligado na Nacional de Brasília, bem no programa de forró, ensinaram-lhe a dançar. Não virou um primeiro bailarino na vida, mas a sua leveza e o penerado bom, orientado pelo ritmo do zabumba, fez dele “o cara” nas festanças das bibocas em que se socava. Ao dançar com uma, duas ficavam na fila de espera. A cara feia do mundo mudou. A vida lhe sorriu. Também um riso franco e escancarado, vindo do fundo do coração, a sua cara estampou. Ao dançar, vez ou outra, derreando a cabeça para trás e com o olhar batendo nas teias de aranha da cumeeira, dava demonstração de que não ligava para os olhares de inveja. Estava, aos poucos, adquirindo uma autoestima que nunca tinha tido.

Como não há bem que sempre dure nem mal que nunca acabe, como diz o ditado, aos 21 anos, sua doce devoção aos forrós deu lugar às sisudas obrigações. A súbita gravidez da filha de um compadre dos seus pais o arrastou para o altar e de lá para as labutas de homem casado. Sofreu! Suar dançando era melhor que suar para ganhar o pão.

Ao rodar de subemprego em subemprego, pra piorar, ao não dar conta de acudir uma tarefa urgente do seu último patrão, ainda deixou escapar uma fala fora de hora: “Cachorro de avechado, nasce cum zói fechado”, um ditado que aprendera com o Adeu Andrade, amigo do Mustafá Bucar, e os dois, amigos do Propício Parrião, sempre repetido por Adeu quando o Zacarias Rocha chegava apressado em algum lugar.

Foi a gota d’água: as portas se fecharam. Por sorte, a abnegada mulher, magrela do pé ligeiro, virou o “homem da casa”, uma licença nada poética para o velho machismo, uma vez que há milhões de mulheres que dispensam essa preconceituosa comparação, haja vista a maioria delas, hoje, sustentar o lar, e ele, Valmi, se adaptou às lides domésticas, cozinhando, limpando a casa, lavando a roupa e passando pano, todo paramentado, sempre com um avental bem amarrado na cintura, só para exibir o seu zelo do agora moço prendado nas tarefas da casa. Cuidava, ainda, do casal de filhos que ele e Deuselina botaram no mundo.

Enfim, Valmi, virou um homem do lar, aumentando as estatísticas dessa nova categoria, cevada com maridos ociosos, quer pelo desemprego, quer pela preguiça para enfrentar a vida lá fora etc.

Como boa esposa Deuselina fez sua defesa, explicando o porquê da lentidão de Valmi: ” Ele num é priguiçoso, adispois de infrentá tanta duença, cada uma mais disgramada qui a ôta, aí ficô ismuricido. É só ismuricimento qui ele tein”.

Assim, aos trancos e barrancos, vão levando a vida que não pediram a Deus, com muita resignação.

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Por José Epifânio Parente de Aguiar 

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