Por
José Epifânio Parente de Aguiar
Tivesse ele nascido nas cercanias do Vale do Silício, contemporâneo de Bill Gates, Steve Jobs, Elon Musk e mais outros gênios e a coisa não iria prestar. Todos, com raras exceções, inteligentões e inteligentinhos, dispensar-lhe-iam a atenção e o respeito que a onça concede somente ao cachorro, entre aqueles que a cercam, o que a enfrenta com bravura e astúcia, em pleno cipoal, na agonia da caçada. Como se sabe, há sempre um cachorro mais cachorro que os outros, e esse cara, com o perdão de hominídeos e canídeos pela comparação, putz, nasceu no interior, lá onde o Judas perdeu as botas, num ermo onde as eras se arrastam preguiçosamente, lugar em que o minuto dura 90 segundos, coisa do tempo relativizado que apenas Einstein e mais alguns poucos superdotados saberiam explicar. Fica na zona rural do município de Porto Franco-MA, pequetita e hospitaleira cidade pendurada num barranco da margem direita do Rio Tocantins.
Pois bem! Como se vê, esse cara era diferenciado. Há sempre um homem mais homem que os outros para não ficarmos somente nos cachorros.
Aos doze anos de idade, com um ABC e uma cartilha na mão, aprendeu a ler e a escrever apenas com a orientação que ele mesmo suplicou a um ancião trêmulo e semialfabetizado, de vistas turvas, que se condoeu ao ver aquele rapagão com tanta sede de saber, mas sem uma escola por perto para o instruir.
Ainda verde, como aprendiz de um oficial, tornou-se um artesão de mão cheia, trabalhando o couro e a sola, fazendo cutucas, perneiras, gibões, caçuás, baús, cabrestos, laços, tamancos, botinas, sandálias etc. Com ouvidos absolutos, tornou-se um sanfoneiro virtuoso, requisitado pelas redondezas. Quando tocava “O Baião da Serra Grande”, composição de Fred Willians e Palmeira, sua sanfona chorava e arrastava os pares para o salão iluminado com lampiões à querosene. Com as letras solteiras que aprendeu a juntar para formar sílabas e palavras, tornou-se um poeta a abordar as doçuras e as amarguras da vida, emocionando quem o lia em papelotes avulsos escritos a lápis ou com uma caneta-tinteiro de bico roto, valendo-se de uma tinta azul extraída de jenipapo verde.
Do sul do Maranhão, seguindo os passos da família, lá nos anos 1930, arribou para o Norte de Goiás, tão inóspito quanto o próprio Maranhão de então, e instalou-se no Vão do Lajeado-GO, hoje pertencente ao Estado do Tocantins, município vinculado antes ao geograficamente continental território de Porto Nacional -GO. A exuberante paisagem onde se instalou, formada por serras, penhascos, cachoeiras e cânions, de acesso difícil, com picadas e estradas apenas tropeiras, fez com que o talentoso Raimundo de Souza Parente – era essa a sua graça – furasse a ponta de um chifre bovino e improvisasse um pequeno berrante. Quando alguém se aventurava a adentrar a mata para caçar, Raimundo alertava: “Leve o chifre. Se você perder o rumo de casa, sopre-o até que o encontremos. Possivelmente, onça nenhuma vai se aproximar de um som tão alto e estranho.”
Raimundo, sanfoneiro e poeta dos bons, por ser deveras apessoado, de pele morena e avermelhada, cabelo castanho e escorrido, com cabeça grande, transbordando inteligência, conquistou Idalina de Souza Parente, sua prima, a mais bonita dentre as beldades da região em um raio de muitas léguas. Com o passar dos anos, a família foi crescendo. Nasceram Vitório, devastado por um câncer aos cinquenta e dois anos; Edson, ceifado aos seis meses de vida por uma paralisia infantil; Edésio, tragicamente levado aos vinte anos pela picada de uma cascavel; Onésio, também falecido aos seis meses por outra paralisia infantil; Edísio, que afogou-se aos dois anos; Manoel, que feneceu em um aborto espontâneo; e Joselito, Juliana e José Antônio, o “Zuzu”, exímio violonista. Esses três últimos, residem em Tocantínia, Palmas e Porto Nacional respectivamente, sempre ruminando as memórias daquela vidinha boa vivida entre os paredões de serras e brejos exuberantes de onde se ouvia, depois do por do sol, belíssimas sinfonias de um coral formado por sapos, pererecas, pássaros noturnos e muitos outros bichos que a natureza generosamente apresentava.
Joselito, nascido no fim dos anos 1940, ao completar nove aninhos, o plástico, os eletroeletrônicos e outros produtos atuais, naquela região, nem promessa eram. Nessa zona rural bem escondida, meninos e meninas improvisavam seus brinquedos, e a vida seguia seu curso.
Joselito, com sua inocência e suas traquinagens, era um garoto de futuro promissor. Na sua idade, como a maioria dos meninos de roça, trabalhava quase como um adulto. Tocava e apartava gado, debulhava milho, encabrestava os cavalos piados, dava ração aos porcos, subia em bacabeira molhada e quando uma galinha da angola cantava escandalosamente no matagal, anunciando o ovo botado, ele ia lá e achava o ninho.
Até uma enxada pequena, com cabo de canudeiro, para ganhar em leveza, ele sabia manusear sem mutilar os dedos, ajudando o pai e os irmãos mais velhos a vencerem o eito. Em casa, não deixava faltar água. Nem no pote, nem na cozinha. Com uma cabaça em tamanho proporcional ao peso que podia carregar, mantinha o casarão de parede de taipa e teto feito com palha de piaçava abastecido. O vasto terreiro também estava sempre bem varrido. Idalina e a filha Juliana, ainda pequenina, davam conta daquela tarefa. Como é sabido, terreiro limpo não junta cobras. Também, as duas, antes de varrerem o casarão com piso de chão batido, cada uma com uma cuia, salpicavam água na quantidade necessária para não levantar poeira. O cheiro gostoso de terra molhada perfumava as almas dos vivos e até as dos mortos que transitavam invisíveis naquela gostosa morada. Os copos de alumínio ao lado pote, brilhando de tão areados com sabão caseiro, folha de sambaíba e a fina areia do rio Lajeado, despertavam a vontade de beber em quem neles batia os olhos. Na dispensa, a farta carne seca, aos traçalhos, ficava pendurada em varas protegidas de algum rato que, os gatos, sempre de barriga cheia, nunca pegavam.
Na oficina improvisada na varanda do casarão, Raimundo, o patriarca, fabricava os utensílios necessários para a labuta do dia a dia. As encomendas eram muitas. A fazenda Firmeza, nome em homenagem ao primeiro posseiro que ali fincou pé, o Firmo, era movimentada. Joselito, nas horas de folga, depois de tomadas as lições por uma professora contratada para ensinar as primeiras letras e as quatros operações à rapaziada, ia para a sombra de uma frondosa mangueira e ali fazia um curralzinho com talos de buritizeiro, enchia-o com gado de osso e, fantasiosamente, sentia-se um fazendeiro realizado.
Para a diversão ficar melhor, pegava uma vassoura de embira, botava-lhe rédeas de cordão no cabo, escanchava a perna sobre a mesma e corria pela casa relinchando, dando vida à vassoura, transformando-a em uma boa montaria, um cavalo alazão no seu imaginário, capaz de qualquer proeza sob o comando do valente cavaleiro montado no seu lombo. Era um cavalo de pau, que não era cavalo de pau nos sonhos de um Joselito inebriado.
De tanto correr pra lá e pra cá, sempre
relinchando e passando pela varanda onde o pai trabalhava uma sola curtida no cocho com casca de angico, foi aos poucos subtraindo a paciência do seu progenitor. Não bastando, para dar verossimilhança às ações do cavalo e do cavaleiro, botava a mão direita no sovaco esquerdo, dava um solavanco no braço que estava pressionando a mão e sonorizava um pum quase perfeito, como um cavalo esporado por seu cavaleiro na hora da arrancada. Enfim, Raimundo perdeu a paciência: “Ô filhinho, pare de relinchar, vassoura não é cavalo, e você também não!” Joselito, por alguns instantes suspendeu o relincho, mas o retomou em seguida. O pai, cada vez mais agastado, elevou a voz e Joselito, percebendo as nuvens de taca que se formavam para cair como uma chuva de lapadas nas suas costas, suspendeu a correria, sarou a boca e foi ao pote beber. De pança cheia, foi lá fora para brincar com o curralzinho lotado de gado de osso. Conferiu tudo, montou-se no alazão e correu em disparada, chegando novamente na varanda onde o pai riscava uma uma sola para cortar direcionadamente. Joselito, já não relinchava.
Magicamente, o seu cavalo se fez jegue, e agora Joselito, entusiasmado,fazendo as vezes de um, com os olhos “grelados”, como a enxergar lindas potras da raça campolina, zurrava a plenos pulmões. Tinha deduzido: “jegue não é cavalo, e o papai não vai ligar”. Que ninguém duvide dos bons sentimentos e da sensualidade transbordante de um jegue quando avista lindas eguinhas fogosas ou não. Suas ventas se dilatam com o resfolegar agitado, em razão da espalhafatosa cantoria, além de por essas ventas pingarem, naquele instante idílico, inúmeras gotas de um líquido libididinoso que se aparado e bebido, ainda morno, debela o fastio sexual de quem se vale de tal mezinha. A prova estava em João de Souza Sá, o velho vaqueiro da fazenda Firmeza. O bom homem, sempre agastado por uma dor nas cadeiras que o deixava fora de combate nas lides do coito, de tão interesseiro, preocupado em vencer as carências da mulher, dava sempre milho farto ao jegue pastor da fazenda Firmeza, seu benfazejo, apelidado de “Janjão”. Janjão era, sem tirar nem botar, o reprutor de número 01 da fazenda , pai de lindas mulas de patrão disputadas pelos fazendeiros da região. João de Souza Sá, por ser prevenido, carregava sempre uma pequena caneca presa ao cinto para aparar a beberagem que caía das ventas do caridoso jegue.
Sem dúvida, Joselito, ao imitar o zurro do assanhado reprodutor, passava-se por um, mas não era literalmente um. Sua jeguice era somente uma brincadeira, mas Raimundo, com o semblante anuviado, supersticioso, temendo que o festivo jegue da fazenda contaminasse o menino Joselito com um desenvolvimento sexual precoce, dando-se por vencido e também querendo reparar uma situação que para seus ouvidos somente piorara, freou o Joselito, segurou em seu braço e falou-lhe: “Filhinho, jegue não. Pode voltar para o primeiro bichinho. Papai não vai mais ficar zangado.”
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