10 anos de emendas impositivas: Legislativo avança sobre orçamento e já movimentou mais de R$ 117 bi – PontoPoder

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Aproximava-se das 22 horas do dia 10 de fevereiro de 2015 quando o então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (MDB), anunciou que, com 427 votos a favor e 44 contrários, a proposta de emenda constitucional 358/2013 foi aprovada e seria encaminhada para promulgação. Aquela matéria tornava impositiva a indicação de recursos feita pelos deputados e senadores brasileiros por meio de emendas parlamentares

A alteração constitucional, promulgada em 17 de março de 2015 em uma sessão solene sob o comando do então presidente do Congresso Nacional, o senador Renan Calheiros (MDB), mudou drasticamente o papel do Legislativo nacional. A partir dali, a relação entre o parlamento brasileiro e o Executivo foi redesenhada, alçando os legisladores a um patamar até então inédito na redemocratização e oficializando um mecanismo que, dez anos depois, já movimentou R$ 117 bilhões em recursos públicos federais.

Naquela noite, os discursos no plenário da Câmara dos Deputados davam o tom que a mudança provocaria. Os deputados diziam que estava “enterrada” a prática de fazerem os parlamentares de “reféns”, “pedintes”, “submissos” ao Executivo. “É a libertação”, “a redenção”, “agora seremos verdadeiramente deputados”, definiam os legisladores em meio ao clima de festa que tomou conta da Câmara.

De fato, o domínio sobre parte do orçamento virou um dos principais ativos dos congressistas, que a cada ano têm abarcado uma fatia maior de recursos. Por outro lado, manobras para beneficiar lideranças e aliados estaduais colocaram uma cortina de clientelismo, suspeitas de corrupção e desequilíbrio no uso de recursos, agora alvos de ofensiva do Supremo Tribunal Federal (STF) para ampliar os critérios de prestação de contas, controle, fiscalização, responsabilização e transparência do dinheiro público.

Esta reportagem integra série produzida pelo Diário do Nordeste sobre os dez anos da execução das emendas impositivas no Brasil e como o recurso é aplicado e distribuído entre os municípios cearenses.

Congresso Nacional

Nesta série de reportagens, o Diário do Nordeste conversa com deputados, cientistas políticos e consultores de finanças públicas para traçar um panorama das transformações provocadas desde o “marco zero” das emendas impositivas até hoje. As matérias também discutem o futuro do orçamento brasileiro e apontam caminhos para garantir mais transparência no uso dos recursos públicos.

Votação, em segundo turno, da Proposta de Emenda à Constituição 358/13, que criou o orçamento impositivo, em 10 de fevereiro de 2015

Legenda:
Votação, em segundo turno, da Proposta de Emenda à Constituição 358/13, que criou o orçamento impositivo, em 10 de fevereiro de 2015

Foto:
Luis Macedo / Câmara dos Deputados

A socióloga e cientista política Paula Vieira, pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia (Lepem), da Universidade Federal do Ceará (UFC), relembra o contexto da época em que as emendas tornaram-se impositivas. 

“Hoje, não vemos o Executivo implementando uma agenda política porque tem menos contato e menos poder diante de um Congresso mais individualizado. São 513 deputados agindo individualmente, perdeu-se a dimensão de grupos que possam, de alguma maneira, facilitar a negociação com o Executivo”


Paula Vieira

Socióloga, cientista política e pesquisadora do Lepem/UFC

“A então presidente Dilma Rousseff tinha acabado de assumir aquele mandato, passava-se a ter um Congresso que enfrentava mais a agenda do Executivo, confrontava de frente essa agenda, tanto que conseguiram esse marco do orçamento impositivo, foi quando tudo começou”, afirma.

“De 2015 para cá, temos um Congresso com muito mais autonomia, que precisa negociar menos com o Executivo. Em contrapartida, o Executivo passa a ter que negociar mais com o Congresso. Para um deputado, ele vai gostar de ter mais autonomia, para o presidente, é ruim”, acrescenta.

Congresso Nacional reunido, em 17 de março de 2015, para a promulgação da Emenda Constitucional 86, que tornou impositiva a execução das emendas individuais dos parlamentares ao Orçamento da União

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Congresso Nacional reunido, em 17 de março de 2015, para a promulgação da Emenda Constitucional 86, que tornou impositiva a execução das emendas individuais dos parlamentares ao Orçamento da União

Foto:
Jefferson Rudy/Agência Senado

Um Legislativo mais autônomo

De fato, dez anos depois, os discursos de parlamentares brasileiros em nada se diferenciam daqueles feitos em fevereiro de 2015, no Plenário da Câmara. Ex-secretário da Fazenda do Ceará e atual deputado federal, Mauro Filho (PDT) avalia que as emendas impositivas “tiraram a dependência dos parlamentares do governo da época”. “Você passa a ter uma autonomia de execução”, argumenta.

O pedetista reclama que há distorções na forma como as emendas são enxergadas pela população e reforça que, atualmente, há mecanismos que barram os “aumentos extraordinários”. “Além disso, metade das emendas dos deputados tem que ir para a saúde pública. O rico já tem dinheiro para comprar remédio, consulta, cirurgia, o menos favorecido não tem, então, fortalecer a saúde pública é atender essa classe mais pobre”, conclui.

É também na autonomia que se baseia o deputado federal Danilo Forte (União) para exaltar as emendas parlamentares. “Foi o governo de coalizão que gerou os ‘anões do orçamento’ e o ‘mensalão’, em função do parlamento ser subserviente aos mandos do Executivo, porque trocava-se o apoio político por emendas. Era uma discriminação muito grande a quem não tinha nada, que era até impedido de exercer a plenitude do mandato. As minorias, as oposições, não conseguiam acessar as emendas”, relembra.

Para o parlamentar, o Legislativo “pode bater no peito e dizer que tem autonomia”. “Formula a lei, acompanha a execução e planeja a execução graças a essa postura de lucidez e de representação. No Executivo você vota em um, no parlamento são 513 para representar as demandas dos diversos segmentos”, conclui.

Emendas impositivas

Quando passou a vigorar em 2015, aquela emenda constitucional afetou apenas as emendas individuais, que cada deputado tem direito anualmente no exercício do mandato. Contudo, novos passos foram dados em 2019, quando as emendas de bancadas estaduais se tornaram de execução obrigatória pelo Governo. Nessa época, houve ainda a criação das emendas de transferência especial, as chamadas “emendas pix”.

Em 2022, novas mudanças foram impostas pelo STF, que analisou a legalidade das emendas de relator (RP9), a base do chamado “orçamento secreto”. A Corte considerou inconstitucional a forma como o mecanismo era usado e ordenou maior publicidade, transparência e rastreabilidade sobre a indicação e o uso dos recursos. Em resposta, o Congresso fez uma manobra para manter a influência sobre o orçamento turbinando as emendas individuais, as de bancada — ambas impositivas — e as de comissão.

As emendas estão previstas na Constituição Federal de 1988 com o objetivo de melhor distribuição dos recursos públicos no Brasil, pois é a forma pela qual o Congresso Nacional pode participar da formulação do orçamento anual, destinando parte dos recursos. Uma das restrições é a utilização dos valores para pagamento de despesas com pessoal e encargos sociais e de ordenamentos referentes ao serviço da dívida.

Ao todo, atualmente, há três modalidades impositivas no Brasil: as emendas individuais de transferência com finalidade definida — quando os parlamentares indicam a destinação final do recurso —, as emendas de bancada estaduais — que são propostas coletivamente pelos deputados e senadores de cada estado — e as emendas individuais de transferência especial (emendas pix). 

As emendas pix são as mais cobiçadas pelos gestores, já que os recursos são transferidos diretamente para os destinatários, cortando caminhos burocráticos. Ao mesmo tempo, essa modalidade é a mais polêmica, justamente pela falta de transparência.

Nela, os recursos repassados não dependem de celebração de convênio e passam a integrar a conta dos entes (municípios, por exemplo) no ato da transferência financeira. Esse dinheiro deve ser usado em ações práticas do governo, com destino já definido, e a prioridade deve ser a conclusão de obras que ficaram paradas. No mínimo 70% das transferências especiais devem ser destinadas a despesas de capital, como investimentos em infraestrutura, excluindo-se os pagamentos de amortização da dívida.

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Aumento da influência em números

De acordo com dados do Tesouro Nacional, entre 2015 e o ano passado, as emendas impositivas foram responsáveis pela destinação de R$ 117,5 bilhões em recursos públicos. No primeiro ano de execução obrigatória, o montante foi de R$ 1,8 bilhão, já em 2024, esse valor cresceu para R$ 26,1 bilhões, um salto de 1.350% em dez anos. 

Esmiuçando as diferentes modalidades de emendas, os crescimentos mais significativos ocorreram entre 2021 e 2023, principalmente com as emendas individuais — que saltaram de R$ 6,4 bilhões para R$ 11,6 bilhões — e as emendas pix — crescendo de R$ 1,6 bilhão para R$ 8,7 bilhões.

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Para este ano, o orçamento aprovado no fim de março indicou R$ 50,4 bilhões em emendas, sendo R$ 39 bilhões para as impositivas, que incluem as três modalidades. 

Desse montante, o recurso orçamentário das emendas individuais é de 2% da receita corrente líquida do exercício anterior. Do valor de cada deputado e senador, pelo menos metade obrigatoriamente deve ser destinado para ações e serviços públicos de saúde. 

Já os recursos das emendas de bancada correspondem a 1% da receita corrente líquida do exercício anterior. Atualmente elas devem ser destinadas a projetos estruturantes em cada estado e no Distrito Federal, de acordo com a definição da bancada.

Há também as emendas de bancada e de comissões não impositivas. Para estas, não há percentual de receita corrente líquida definida, por não ser de execução obrigatória. Atualmente estas devem ser destinadas a projetos de interesse nacional ou regional, definidos de comum acordo entre Legislativo e Executivo.

Entre a ideia e a prática

Assim como os outros deputados, José Airton Cirilo (PT) também aponta que as emendas impositivas deram um fim à necessidade dos parlamentares “mendigarem qualquer tipo de demanda e recursos junto aos governos e ministérios”. “Mesmo eu sendo da base do Governo, sendo do PT, nunca tive recursos extras com o Lula (nos mandatos anteriores) e a Dilma (Rousseff). Havia um grande prejuízo porque as nossas cidades não eram atendidas”, relembra.

O petista, no entanto, pondera sobre os os rumos tomados pelas emendas nos últimos anos.

“Há graves distorções, com os recursos concentrados na mão do relator ou de outras figuras que aportam de forma altamente centralizadora, privilegiando só a si. Tem inúmeros exemplos de quantidades absurdas de recursos liberadas para cidades com imenso privilégio. Isso ficou agravado com o orçamento secreto e com as emendas de comissão, que não têm nada de transparente e ficam concentradas nas mãos do presidente da Câmara e dos líderes, sem passar por uma discussão”, critica.

Quando as emendas tornam-se impositivas, o Executivo passa a ter a obrigação de destiná-las à finalidade que o parlamentar indicou, salvo nos casos de impedimento de ordem técnica.

“Ou seja, houve uma concentração novamente, uma distorção grave e profunda que precisa, urgentemente, ser corrigida. Não é correto que, enquanto um parlamentar tem direito a emendas impositivas individuais, quem é da cúpula dos líderes e do presidente da Câmara consiga liberar R$ 100 milhões ou R$ 200 milhões de forma absurda”, acrescenta.

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Distorções orçamentárias

Fernando Moutinho, consultor de orçamento do Senado Federal e professor universitário, reforça as críticas sobre o caráter individualista tomado pelas emendas impositivas. Para ele, há uma “distorção” sobre a ideia de fortalecimento do Congresso.

“Quando fala-se em domínio do Congresso sobre o orçamento, o Congresso deveria ter, em qualquer modelo democrático, o controle enquanto ente coletivo de políticas nacionais e da respectiva alocação, mas o que essa modificação (de tornar as emendas impositivas) trouxe foi tirar o Congresso enquanto ente coletivo, com todas as limitações que existiam, e entregar para a somatória dos parlamentares individualmente”, aponta.

“Você determina um status privilegiado a uma determinada parcela de despesas pela função do agente dentro da estrutura do Estado, não por conta da natureza da despesa. Claro que existe uma hierarquia de importância de despesas, mas ela não pode depender jamais de quem foi que a indicou, que é exatamente o que ocorre com o orçamento impositivo”


Fernando Moutinho

Consultor de orçamento do Senado Federal e professor universitário

Professora de graduação e pós-graduação em Direito da Unifor e doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Mariana Dionísio de Andrade define a conjuntura atual como a de “hipertrofia” dos parlamentares, que agregaram poder de influência “sob o argumento da redução das desigualdades regionais”. 

“No entanto, não dá para falar em avanços quando não há transparência sobre as prioridades. O orçamento público, que deveria seguir um planejamento estratégico, acaba sendo fatiado em tantos projetos que não sobram recursos para o essencial. No final das contas, as bases eleitorais mais numerosas acabam definindo mais a destinação do dinheiro que a necessidade real”, avalia.

Para Moutinho, o resultado de todo esse poder individual aos parlamentares se reflete nas urnas. “Uma parcela significativa dos deputados e senadores tem uma conexão eleitoral, uma ligação ou uma alavancagem com seus eleitores vinculada não a políticas nacionais, mas uma relação de troca de favores ou entrega de benefícios concretos, como uma obra ou uma construção, é o que chamamos de conexão distributiva. São parlamentares que construíram conexões eleitorais contrapondo a uma oferta mais ideológica”, afirma.

De acordo com Moutinho, o orçamento impositivo reforçou justamente esses políticos com relações mais “distributivas” com o eleitorado. “A discussão sobre políticas nacionais, sobre opções de direita e de esquerda em relação à economia, previdência, segurança pública e direitos humanos, por exemplo, impacta cada vez menos na escolha de voto para o Legislativo”, conclui o professor.

Judiciário x Legislativo

Desde 2022, o STF vem promovendo uma ofensiva contra emendas que possuem pouca ou nenhuma rastreabilidade. A Corte pressiona o Congresso para estabelecer regras que garantam transparência pública na destinação de emendas. Em dezembro daquele ano, os ministros julgaram as emendas de relator e de comissão como inconstitucionais.

Em resposta, o Congresso aprovou mudanças nas regras de distribuição de recursos para se adequar às considerações do Judiciário. Contudo, a iniciativa foi questionada no STF pelo Psol, que alegou que os princípios exigidos pela Corte seguiram sendo descumpridos.

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Em agosto do ano passado, o ministro Flávio Dino determinou a suspensão de todas as emendas e estabeleceu a adoção de mecanismo de rastreabilidade como condição para liberar os repasses. Ele ainda ordenou que a Controladoria-Geral da União (CGU) auditasse o envio dos recursos.

Nos meses seguintes, o Legislativo e o Executivo se movimentaram para criar novas regras para a execução dos recursos. Em dezembro, Dino liberou o pagamento das emendas parlamentares, mas estabeleceu regras mais rígidas do que as criadas pelos parlamentares e sancionadas pelo presidente Lula (PT). A medida gerou incômodo entre os congressistas, que a interpretaram como uma interferência indevida.

Contudo, Dino avançou mais. Em 23 de dezembro, ele ordenou o bloqueio de R$ 4,2 bilhões em recursos. A determinação foi uma resposta à manobra do então presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), de indicar o montante sem cumprir as exigências da Corte.

“Em um contexto de falta de transparência, falta de rastreabilidade, concentração de poder nas mãos de poucos partidos e uso político-eleitoral dos recursos, a atuação do Judiciário tem se mostrado cada vez mais necessária. E as ações diretas de inconstitucionalidade apresentadas ao STF pela Abraji, PGR e Psol são a prova disso. O STF não tem o poder de legislar, é claro. Mas ao suspender emendas pela falta de transparência na transferência dos recursos, freia distorções e dá claros sinais de que uma reforma estrutural é necessária”


Mariana Dionísio de Andrade

Professora de graduação e pós-graduação em Direito da Unifor e doutora em Ciência Política pela UFPE

Já em fevereiro deste ano, o magistrado acatou o plano de trabalho do Congresso de dar mais transparência à indicação dos recursos, identificando cada deputado e senador responsável e os beneficiários. À época, ele também autorizou o desbloqueio de todas as emendas que ainda estavam suspensas.

No início deste mês, Dino ainda determinou que estados e municípios prestem contas, em até 90 dias, das emendas “pix” recebidas entre 2020 e 2023, apresentando os respectivos planos de trabalho. O descumprimento da ordem pode provocar tanto o bloqueio da execução da emenda quanto investigação sobre a responsabilidade dos agentes públicos.

Presidente do STF e ministro Dino se reúnem com presidente do Congresso, o senador Davi Alcolumbre

Legenda:
Presidente do STF e ministro Dino se reúnem com presidente do Congresso, o senador Davi Alcolumbre

Foto:
Antonio Augusto/STF

O Diário do Nordeste procurou o Tribunal de Contas da União (TCU), responsável pelo acompanhamento e a fiscalização das emendas parlamentares, contudo não houve compatibilidade de agenda para atender à reportagem, segundo a assessoria de imprensa do órgão.

Em busca de transparência

Os analistas políticos ouvidos pelo Diário do Nordeste foram unânimes em apontar a urgência nas medidas determinadas pelo STF. 

Fernando Moutinho definiu como um “passo bastante grande”. “Essas decisões ainda são preliminares, mas já foram lançadas e são muito significativas, trazem uma transformação muito grande na lógica que até então vinha prevalecendo sobre o tal orçamento impositivo de emendas. A questão agora é se vai ‘pegar’, a sociedade tem que estar atenta para ver se serão cumpridas”, conclui.

“Os parlamentares ainda vão brigar muito para não ter essa redução de autonomia e poder. Não tem parlamentar — nem do alto clero, nem do baixo clero — que vá querer essa perda, com raras exceções de alguns mais ideológicos (…) Mas, assim, o que tem sido possível fazer para dar mais transparência, clareza e rastreabilidade, o Judiciário tem encampado para ser feito”, reforça Paula Vieira.

 

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